A aridez das árvores da arte independente

”Numa sociedade capitalista, é preferível uma incompletude que te deixe financeiramente estável à uma liberdade pessoal que te deixe criativamente pobre.”

Henggo
5 min readApr 29, 2023

EM UMA LEMBRANÇA DO MEU ESTADO DE ESPÍRITO DESSES ÚLTIMOS ANOS, AS FOLHAS DA ÁRVORE EM FRENTE À MINHA CASA ESTÃO MORRENDO. Há algo de curioso quando toda uma praça vomita verdejante enquanto apenas aquele espaço de uns dois metros quadrados ressoa aridez. Do mesmo modo, há algo curioso quando o anoitecer traz bebedeiras e berros sentados nos bancos dessa mesma praça, enquanto aqui em casa repousa silêncio, natural ou artificial, em contraste com essa efusividade.

Estou cansado.

Não sei se estou mesmo, mas o fato é que me sinto cansado.

As decisões na vida ao longo dos anos me trouxeram a uma realidade artística independente, mas cujos lucros são tão pífios que a todo momento me pergunto se eu realmente acredito que isso me dará algum futuro. E veja que sou adepto do saber psicológico do som da presença, de estar presente em cada coisa que se faz. Contudo, minha mente não é imune ao redor e sofro da mesma infecção generalizada que anseia por saber sobre o tal futuro.

Talvez, se esses pensamentos tivessem vindo décadas atrás, hoje eu seria alguém concursado, com um salário ótimo; longe da arte, triste, quem sabe, mas estável em minha solidão.

Talvez.

As pessoas tendem a elogiar a coragem de pedir demissão, chegando mesmo a incentivar o ato, porém, na prática, estão fazendo um experimento social: empurram os outros para esse rompante e veem se dá certo, enquanto elas mesmas, apesar de entristecidas, confusas, querendo dar um tiro na cabeça, continuam na segurança de seus salários.

Futuro.

Me tire dessa jaula, irmão, não sou macaco

Desse hospital maquiavélico

Meu pai e minha mãe, eu estou com medo

Porque eles vão deixar a sorte me levar

Você vai me ajudar, traga a garrafa

Estou desmilinguido, cara de boi lavado

Traga uma corda, irmão (irmão, acorda!)

(Cobaias de Deus, Cazuza)

No ano de 2012, fim do famoso calendário Maia, havia uma comoção em torno do fim do mundo. Artigos, teorias, vídeos e toda sorte de idiotices foram feitas em torno do tema. Como sempre, o planeta continuou muito bem, obrigado. Mas foi um apocalipse para mim. Cansado do jornalismo, recém-saído da universidade, notas ótimas, experiências mil, uma promessa, lá estava a promessa trabalhando como assessor em uma secretária governamental onde os concursados burlavam o ponto de presença e deixavam o trabalho para nós, os contratados.

Viva o serviço público brasileiro!

Eu me cansei três meses depois e pedi demissão. Pulei do barco, como meu chefe disse à época, meio ofendido por eu tê-lo abandonado. O detalhe é que minha saída ganhou um tom de “saída por cima” quando, um mês depois, todos os meus colegas foram sumariamente demitidos e humilhados em seu último dia de trabalho.

Em 2012, mundos acabaram sim.

Talvez se eu tivesse bajulado as pessoas, ficado de quatro, sorrido mais; talvez se eu soubesse bajular as pessoas, hoje eu não estivesse mentalmente cansado. Ou, pelo menos, estivesse mentalmente cansado, mas com os bolsos cheios de dinheiro, né?

Talvez.

O meu planeta se desprendeu do sistema Comunicação Social e vagou por uns meses, errante feito um Oumuamua interestelar. Eu deveria ter passado, quem sabe me chocado contra algum planeta, destruído coisas, causado pânico. Infelizmente, fui criado para seguir em frente apesar de tudo e foi assim que aportei nas Artes Plásticas. Houve aplausos, “uma retomada das origens, enfim”, aclamaram. Quando meu mundo se encaixou em sua órbita em torno de tintas e de telas, tudo pareceu ganhar novo ritmo. Empolgante.

O problema é que não notei que minha translação seria lenta, bem lenta, e que, à medida que percorria os traços, menos luz eu teria.

Ser um artista independente é conviver com elogios mil pela “coragem”. O problema é que “coragem” só é bonita no papel. Numa sociedade capitalista, é preferível uma incompletude que te deixe financeiramente estável à uma liberdade pessoal que te deixe criativamente pobre. Some isso ao fato de eu odiar o histrionismo das redes sociais, essa vontade que as pessoas têm de entrar na competição para ver quem emula mais felicidade, e você tem ideia do problema que arranjei para mim.

Lidar com arte independente é estar disposto, disposta, a “se vender”, coisa que descobri não fazer parte do meu repertório. Eu só sei expor o que sinto, não consigo emular sentimentos que destoam da minha conjunção.

As pessoas olham as dezenas, centenas de telas que tenho, e só veem cores, quantidade e “liberdade de pensamento”. Incentivam muito, pedem bastante, compram pouco. Por sorte, as redes sociais ainda são muito voltadas ao texto e posso usar apenas emojis após um “Ah, muito obrigado!”. Se fosse por vídeo, seria um problema. Não sei ser falso e, quando tento, meus olhos me denunciam. Desde criança é assim.

Em um dos meus aniversários, talvez de 9 ou de 10 anos, minha mãe, consciente do pequeno monstro de sinceridade que colocou no mundo, me alertou para que eu recebesse os presentes “de uma forma mais bondosa”. Tudo bem. Coloquei um sorriso no rosto e lá fui eu, sorridente e serelepe, sem o destaque da noite. Abraçava, recebia es embrulhos, elogiava, fazia caras e bocas, porém, meu olhar incendiava a cada pacote tolo que me obrigavam a abrir. E as pessoas percebiam. Muitas se fazem de burras, sorriem por contrato social; outras, a maioria, penso, não sabem ler pessoas, mas no fundo percebem que há algo de errado.

Eu nunca soube talhar uma máscara a contento.

Talvez, penso, se eu soubesse, não estaria tão cansado hoje em dia e poderia ser um desses influencers que berram felicidade, dançam a moda e atraem um séquito de fãs para orbitas esse mundo.

Talvez.

Na minha composição atual, eu não consigo.

Percebe o paradoxo entre viver como se quer, viver sua verdade, e viver num mundo que estimula essa verdade, mas no fundo a rejeita? Um mundo onde para ter sucesso vivendo essa verdade você precisa deixar algumas dessas verdades e ser falso de vez em quando?

Seja verdadeiro, mas não tão verdadeiro.

Desgoste das coisas, mas não desgoste tanto.

Finja um pouco.

É, eu não sei fingir.

O prego que se destaca, dizem, é o primeiro a levar martelada. Mentira. Assim como uma árvore diferente perdida em meio ao verdejar de suas colegas, o prego que se destaca é o primeiro a enferrujar.

--

--

Henggo
Henggo

Written by Henggo

Escritor, Revisor & Ghostwriter. Coleciona trilhas sonoras e nome estranhos de pessoas enquanto espera a chegada dos ETs. Saiba mais em linktr.ee/Henggo

No responses yet