O GAROTO TEVE UM LAMPEJO, PAROU DE SÚBITO E VIROU-SE. Estava correndo do quê? Sentiu a adrenalina cair ao mesmo tempo que a consciência retomava o controle. Piscou algumas vezes, olhou para as mãos. Segurava a chave de roda com tanta vontade que os nós dos dedos estavam esbranquiçados — de fato, percebeu, a única parte das mãos que não estavam sujas de sangue. Num repelão, deixou o objeto cair no asfalto.
“O que eu fiz?”
Seu carro estava metros adiante, a porta do motorista escancarada, ainda ligado. O homem sentiu o gosto do medo. Caminhou até o veículo. A medida que se aproximava, distinguiu o arranhão na lateral da Ferrari, as marcas de pneu no asfalto, o cheiro de queimado. Tateou o prejuízo como quem tateia um cristal quando sua atenção foi puxada em direção a uma sombra na penumbra adiante.
O homem semicerrou os olhos e prendeu o fôlego. Lembrou-se.
Cinquenta metros à frente estava uma motocicleta que mais parecia uma bola de papel; ao lado, dois corpos. Uma menina de uns 12 anos com a farda da escola e uma mulher de no máximo 30 anos. Estremeceu. Quilômetros atrás, ela se assustou com um cachorro que invadiu a pista e, sem querer, raspou na lataria do carro; da Ferrari que papai e mamãe haviam lhe dado na semana anterior como presente de 18 anos.
A moça parou a moto, desculpou-se, disse que ia pagar. Ele a chamou de nomes invisíveis, ameaçou processar, alegou que ela não teria dinheiro para pagar nem por um centímetro da pintura.
“Tu sabe quem é meu pai, caralho?”, berrou para a mulher.
Quando ela, gentilmente, falou que faria um esforço, conhecia uma oficina e pediu que ele a seguisse, a raiva tomou conta e ele viu a partida dela como uma fuga. Perseguiu-a até bater na moto. Sem controle, engatou a ré e passou por cima de novo. E de novo e de novo e de novo. Ainda berrando e espumando de ódio, pegou a chave de roda e bateu nas duas até se cansar e começar a correr.
Foi quando parou e voltou.
Aproximou-se dos cadáveres. Da bolsa da criança pendia um caderno. Ela tinha a letrinha bonita, redonda, caprichosa, ele notou. No cabeçário de uma folha, agora manchada de vermelho, o rapaz leu a lição do dia: “Ditados populares estrangeiros”.
As luzes da polícia e das ambulâncias iluminaram a violência. Pessoas começaram a gritar, cachorros latiram, uma policial veio por trás e o jogou contra o chão. Caiu de joelhos por cima do caderno. Finalmente, pode ler o primeiro ditado anotado pela criança.
Tarde demais, com sangue nas mãos, o rapaz recebeu a lição que nenhum dinheiro consegue comprar:
“Em um momento de ódio, tenha paciência para não ter 100 anos de arrependimento.”
Mas a macheza é surda, está cada vez mais.
E ninguém se importa.