A constância da angústia de pensar e olhar demais

Apenas um ensaio durante a Procissão de São Francisco, em Canindé

Henggo
3 min readFeb 26, 2025
Vê-se uma procissão percorrendo ruas em um ambiente amarelado que remete ao calor do Sertão.
“A Procissão em Canindé”, por Henggo

ÀS VEZES, EU OLHO PARA AQUELAS PESSOAS E ME PERGUNTO SE SÃO MAIS FELIZES. Sem nada, sem posses, sem dentes, mas com sorrisos diante de um santo. E levantam as mãos num desejo de arrebatamento, transcender das dores, esquecimento de que suas vidas são ricas de tão pouco. Aquelas pessoas não têm tolas dores de cabeça com investimentos sem lucro, não se preocupam com o preço do combustível e nem temem as consequências de processos jurídicos. Eu olho para aquelas pessoas com velas durante a procissão de São Francisco das Chagas, em Canindé, e marejo minha solidão. Pobreza misturada à parcas felicidades, desespero e esperança, cansaço que se derrete na poeira dos romeiros. É felicidade que emanam ali? É uma vontade de sumir que emana daqui?

Na caminhada pelas ruas, vejo aquelas pessoas em redes debaixo das árvores, panelas em fogareiros, churrasqueiras improvisadas; crianças brincam sem amanhã, uma idosa se balança no mormaço enquanto reza o terço, um homem sem camisa fuma sua fé. E estou triste com minhas pulseiras de prata e roupas de marca.

Penso se a minha tristeza não seria uma hipocrisia.

Qual a medida para se qualificar e quantificar a veracidade de uma dor? Se tenho recursos para custear soluções, minhas dores têm a mesma validade? Posso doer se tenho uma cama onde prantear em silêncio? Minhas lágrimas evaporam mais rápido do que às daquelas pessoas? Ou a gravidade dos meus problemas não garantem líquidos?

Aquelas pessoas parecem tão tranquilas na roda gigante, com gritos de empolgação a cada voo das cadeiras giratórias, rodando e rodando como se a cada volta deixassem parte dos problemas para trás. Por que minhas cicatrizes não saram quando faço o mesmo? Por que esse pensamento de afogamento não desvanece quando termina o carrossel? Por que olho para as imagens e não sinto mais nada?

Sinto falta do tempo em que a ignorância residia em mim.

Entrar em uma igreja era como despertar, iluminar-se, abraçar-se e… E… Mentira. Sabemos que nunca foi assim. No Catecismo, eu já questionava, duvidava, veria incômodos; sorria de quem se ajoelha. Será que de fato sinto falta da ignorância?

Creio que não.

Certa vez, quando eu era criança, um padre queria me dar aulas de inglês particulares na Casa Paroquial. Minha mãe não deixou. E essa mesma mulher que um dia desconfiou do seu líder espiritual esta aqui ao meu lado com um terço nas mãos. A vida é estranha, molda correntes, vida-aranha tecedora de teias. Ela é mais feliz? Encara os problemas com mais naturalidade? Ou será que na intimidade dos sonhos berra súplicas a um Deus que sorri da inutilidade dos gritos?

Um idoso acompanha a procissão de joelhos, lágrimas criando lagos na face encovada, rio que inunda as marcas da idade. Papel picado revoa pelo ar quando a procissão dobra em uma esquina, coroinhas cantam louvores, incenso recende; gente olha para o céu, abana o calor, bebe água, move leques, enxuga o suor, andam como se suas vidas dependessem disso; como se cada passada fosse um grande passo para a humanidade.

O peso dos meus passos em tênis de R$ 300,00 têm impacto diante dos pés descalços tão imersos em fé que parecem não sentir dor? Como funciona a balança entre merecedores, ou não, de atenção? O bispo em vestes pomposas fala sobre pobreza e sobre a importância de uma vida de simplicidade. E ergue um cálice dourado com sua estola dourada e chapéu com bordados dourados em prol de um santo de pobreza e abnegação cuja imagem tem uma roupa com ornamentos dourados.

Sim, às vezes eu olho para aquelas pessoas e me pergunto se são mais felizes. Acho que não.

Estamos todos fodidos.

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Written by Henggo

Escritor, Revisor & Ghostwriter. Coleciona trilhas sonoras e nome estranhos de pessoas enquanto espera a chegada dos ETs. Saiba mais em linktr.ee/Henggo

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