A “dor” de ser LGBTQIA+
Algumas reflexões baseadas nos longas “Close” e “Corações de Pedra” e no média-metragem “Dòst”.
FOI UM GATILHO. Muitas pessoas reclamam que filmes LGBTQIAP+ só “contam histórias tristes”. Mas, infelizmente, essa é a nossa história. Paciência. Não de tristeza, veja bem, mas uma história de um entorno que nos corrói, anula, ignora, mascara; exige que sejamos outra pessoa e faz com que julguemos nossa sexualidade como algo “anormal”. Isso é triste.
Não gosto de spoilers e não os darei. Só posso dizer que, para quem diz que “deviam ter dado uma justificativa mais forte” pro personagem Rémi, você quer justificativa mais forte do que se sentir invisível e se ver excluído? Justificativa maior do que viver, dia após dia, hora após hora, ano após ano, com milhões de pessoas te dizendo que você está errado, errada? Apanhando, sendo chutado, afogado, achincalhado, humilhado? Bom, se você me disser que aguentaria isso “de boa”, sem nenhum problema, meus parabéns.
O filme “Close” (2022) me fez voltar 20 anos no tempo, quando eu tinha 15 anos e tinha um Léo na minha vida. Era uma amizade para além de tudo, cumplicidade e conversas profundas, olho no olho, sem medos. Sabe o que aconteceu: essa irmandade foi extirpada de nós dois por olhares, comentários, piadinhas, desenhos ofensivos, bullying diário, empurrões, cartazes dizendo sermos “namoradinhos”. Aos poucos, a erva daninha se espalhou. Ele me afastou, eu o afastei. Há três anos, em um shopping, nos encontramos e não nos falamos.
Isso também é uma morte. Incessante. Recorrente.
Infelizmente, essa é a nossa história. Aceite.
Você faz ideia do que é você ter tudo e a sociedade de repente te fazer crer que você está errado? Não é fácil apanhar e continuar rindo.
Este é um filme-tapa que se torna universal por ser sobre todos nós. Nós que julgamos, nós que somos julgadores, nós que moldamos e alimentamos os tribunais sociais. E, para mim, o mais importante de “Close” é como ele não é necessariamente um “filme LGBTQIAP+”.
A pergunta que fica é: Rémi e Leo são um casal, ou nós é que pré-julgamos assim? Por que duas meninas podem dormir na mesma cama e dois garotos não? Por que dois garotos muito próximos são automaticamente gays? Por que o choro de um homem ainda é “coisa de viado”? Por que um mero abraço entre dois meninos levanta desconfiança? Você percebe os lugares para onde o filme nos leva?
Dói, amigo e amiga. Dói.
Neste ano de 2024, estou com 36 anos e ainda com as cicatrizes. E aqui está a importância de “Close”, pois, não é exatamente sobre bullying. O bullying é a ponta do iceberg de algo muito mais profundo, cultural, religioso, entranhado nas mentes. Eu tenho cicatrizes do bullying físico, mas as cicatrizes psicológicas, provocadas pelo entorno, pelo meio social geral, são muito, muito, muito mais sérias. E ninguém vê. De fato, penso que quase ninguém se importa de verdade.
Sempre que falo sobre isso, recebo pedradas. Em tempos de redes sociais, época de números e estatísticas, as dancinhas desviantes de atenção mais valem do que o puxão da realidade. As pessoas, em sua maioria, não querem que você fale de sua dor porque, quando você faz isso, é como desligar a tomada dos memes e das graças e lembrar que isso não é a realidade.
Junto ao filme “Close”, recordo agora do média-metragem “Dòst” (2018) e do impactante longa-metragem “Corações de Pedra” (2017). Produções LGBTQIA+ serenas que fogem dos clichês que muitos autores e autoras insistem em fazer. O média-metragem aborda a relação de um adolescente com o grupo de amigos ao se descobrir gay, enquanto o longa-metragem mergulha em tema semelhante, somando isso com a presença de uma constante: a famigerada família conservadora e religiosa. O primeiro se passa na Alemanha, o segundo na Islândia, “Close” traz a realidade holandesa.
Todos somos nós.
Sim, cada um com suas peculiaridades, cada um deles imerso nos privilégios de seus países, mas todos alinhavados pela mesma palavrinha de três letras: dor.
É nesse ponto que eu tenho tanta raiva do chamado desespero pelo pink money, que é como muitas empresas e pessoas usam temas LGBTQIA+ para atrair atenção e, é claro, dinheiro, o nosso dinheiro. São cantores héteros que fazem discursos edificantes esperando aplausos efusivos ao dizerem obviedades, influencers que usam as cores da bandeira do arco-íris, crescem na mídia e depois chutam os LGBTQIA+; pseudo-cantoras que sugaram a população LGBTQIA+ e depois se aliaram com quem quer nos destruir.
Isso também fere por mostrar como apanhamos tanto e de tantos lados que tendemos a nos apegar a qualquer idiota que estenda a mão esquerda, mesmo que na direita esteja segurando um revólver para atirar em nossas cabeças.
É triste.
E se você acha que pegar dois atores héteros e criar um ship é uma ajuda, desculpe-me acabar com o seu sonho, mas não é. Porque, quando você alimenta isso, a mensagem passada para quem nos mata é exatamente a de que “esses gays pensam que todo mundo é gay como eles”. Em outras palavras, as pessoas que fazem isso estão alimentando o preconceito que o filme “Close” critica. É um ciclo sem fim.
Dói.
Os dois filmes e o média-metragem trazem aspectos de silêncio e de solidão que permeiam a vida de uma pessoa LGBTQIA+. Muitos amam o espetáculo, as cores, o estereótipo do “gay bafônico” que é o melhor amigo e escuta as amigas. Como eu já mencionei, as pessoas amam o show, mas odeiam os bastidores. Porque nos bastidores, como “Dòst”, “Corações de Pedra” e “Close” insistem em mostrar, nós estamos sozinhos com nossos monstros. Sim, até cercados de amigos, mas sozinhos diante de uma realidade cruel que nos vigia constantemente.
Eu tenho certeza de que se você que está lendo isso aqui for uma pessoa LGBTQIA+, em algum momento já se perguntou algo como “Será que isso um dia vai mudar?”.
Isso é uma dor.
Legal ter empatia, legal ser militante (ou simpatizante, como antes estava na ex-sigla GLS), legal lutar junto. Mas não venha dizer que você “entende essa dor”, ou que “se sente próximo”, como me disseram certa vez. Não, você não consegue. Se você for hétero, você vive em uma espécie de “privilégio de sexualidade” que faz com que você possa andar de mãos dadas, ir ao shopping com sua namorada ou namorado e dar um beijo nele ou nela sem arriscar levar um xingamento.
Eu tive duas namoradas e um namorado. Com Patrícia e Manuela, era uma vida comum, banal. Com Diego, era como viver em um eterno “e se”: e se o pessoal descobrir? E se eles falarem mal? E se a gente andar de mãos dadas? E se a gente contar? E se a gente não contar? E se a gente ficar naquela praça? E se a gente passar perto daqueles caras? E se a gente for visto juntos? E se descobrirem que viajamos juntos? E se não acreditarem? E se a fulana nos convidar para o casamento dela? Temos que arranjar “parceiras” para irmos, ou vamos juntos?
O “e se” é uma grande morte.
Percebe como o que eu falo como “dor”, na verdade, é devido à sociedade? De fato, ser LGBTQIA+ não dói. É uma característica tão banal quanto a cor das sobrancelhas. Mas a sociedade — sempre ela! — dá tanta importância a isso que até a banalidade vira algo abismal, doloroso, dilacerante.
A “dor de ser LGBTQIA+” é a dor da incongruência de uma sociedade hipócrita que nos usa para mascarar as merdas que faz.
“Close”, “Dòst” e “Corações de Pedra” estão mais perto de nós do que pensamos. Se você puder, ouse olhar para além do óbvio e estenda sua mão de verdade.
Não precisamos de pena e muito menos de discursos vazios. Precisamos de empatia. Apenas isso.