A energia que chamamos de deus (ou Credo, Elza Soares)

O que se esconde para além das paredes das igrejas e dos templos é de uma pureza desencaixada de um mundo apático.

Henggo
7 min readNov 15, 2024
Um homem careca de costas, sem camisa, segurando um rodo contra as ondas do oceano.
Um homem com rodo. Arquivo pessoal.

EU SEMPRE TIVE PROBLEMAS COM A IGREJA. Minha mãe conta que, mesmo bem pequeno, eu já odiava ir à missa. Acho que não conseguia entender o conceito, sei lá. À medida que envelheci, comecei a notar que havia uma desconexão gritante entre o que padres, pastores, rabinos, monges, mães e pais de santo pregam e o que de fato vemos na sociedade e nas atitudes de cada pessoa. Saio nas ruas, olho para o trânsito, percebo desrespeito nos corredores de um supermercado, leio os comentários na internet, assisto à barbárie das torcidas nos jogos de futebol, escuto os discursos políticos e, para mim, parece que as religiões têm falhado em trazer conexão e comunhão às pessoas.

É falação demais para amor de menos. E, quanto menos amor — essa coisa abstrata que hoje parece piegas —, mais cegas noto que as pessoas ficam para a simplicidade compilada em quatro letras: deus.

Claro que é algo muito pessoal e é provável que alguém lendo este texto se sinta ofendidíssimo, ofendidíssima; alegue que “mas eu sinto deus na igreja, sim!” e até queira me jogar uma pedra (divina) para me fazer entender (divinamente) que eu estou errado. Mas esse é o ponto: deus é o que uma igreja, uma religião, uma seita dizem que é, ou deus é o que sentimentos, independente das quatro paredes de um templo?

Algo que sempre me perguntei — e explica muito o motivo das aulas de catequese terem sido uma dor de cabeça para mim — é: quem garante que aquele homem ali na frente, o padre, pode me explicar o que é deus? Uma vez, questionei a professora de catequese até que ponto eu podia confiar em um padre, já que ela mesma havia dito que “só encontramos deus no nosso coração. Ela ficou ofendidíssima e me deu um sermão divino que, graças a deus (!), entrou por um ouvido e saiu pelo outro.

Não conseguiram me doutrinar.

O que vou falar agora é polêmico, tenho consciência disso, mas às vezes eu tenho a percepção de que, diante das coisas sérias pelas quais eu passei (violências físicas, estupro, afogamento, muitas cirurgias), se eu fosse alguém muito ligado à igreja, aos ideais de “pecado e sofrimento”, eu estaria com a cabeça muito, muito, muito mais ferrada do que estou.

Minha crença eu te conto de cor

Não preciso que ninguém me ensine

Que o amor é o deus que não cabe na religião

Eu reconheço que as religiões têm um papel fundamental de controle social. Muitas das vezes, noto que as pessoas não saem matando umas às outras mais devido a alguma doutrinação sobre “castigo e inferno” do que apenas por questões legais. Se já vivemos em um mundo sanguinário, apesar das religiões, imagine como seria sem elas?

Mas aí é que está: será que não estaríamos melhor se as religiões não existissem e tivéssemos aprendido a escutar deus no silêncio da alma?

É, eu sei, é inconcebível falar algo assim. Eu escrevo isso aqui porque sei que poucas pessoas lerão, mas evito falar no meu convívio social. É curioso porque, por mais que eu fale sobre a minha história de vida, tudo o que passei, as pessoas não conseguem assimilar como as várias mortes fortaleceram minha fé ao mesmo tempo que me afastaram definitivamente da igreja. Para a maioria, igreja e deus são sinônimos e você só consegue alcançar a fé se tiver alguém ali, fazendo papel de guia espiritual, por mais que esse “líder religioso” possa ser um poço de chorume que só sabe falar sobre medo e fogo do inferno.

Credo, credo

Sai pra lá com essa doutrinação

Credo, credo

Eu não quero o medo me dando sermão

Credo, credo

Falta “sim” nessa tua oração

Credo, credo, credo

Buscar deus sozinho, sozinha, é uma jornada bonita, libertadora, mas longuíssima, assustadora e solitária. O problema é que, em um mundo cada vez mais violento, com pessoas que precisam de barulho porque não aguentam conversar com os monstros que vivem dentro de todos nós, o silêncio se torna o diabo.

Deus é silêncio, logo, deus é o próprio diabo.

Desse modo, muitos preferem aquele “deus” belicoso das religiões, o deus que “oferta com a mão direita e tira com a esquerda”; o “deus de Israel” sangrento e vingativo e punitivo. Esse “deus” é confortável porque ele parece prestes a lançar um raio na cabeça de quem odiamos ao invés de exigir que amemos os diferentes.

Que “deus” é esse?

A mentira eu conheço tão bem

Não preciso que ninguém me aponte

Um castigo que serve só para vender o perdão

Que “deus” é esse de um padre que certa vez, ao saber que eu, criança, estava nas aulas de inglês, disse para minha mãe me deixar ir com ele para que ele me desse “aulas particulares” — o mesmo padre tão respeitado que passou seis anos em uma paróquia tendo caso com um coroinha? Mas as pessoas o enaltecem até hoje, afinal, ele é o “guia espiritual, o pastor do rebanho” e todo esse blablablá doutrinador.

Que “deus” é esse de um padre que aluga uma Toyota, enche com os coroinhas da igreja e com caixas de cerveja e vai passar um final de semana nos Lençóis Maranhenses? E, quando sai da paróquia, deixa a casa paroquial cheia de garrafas de vinho? É, talvez não seja vinho, é claro. Talvez ele só estivesse estocando o “sangue de Cristo”. Amém! Esse padre hoje, só para você saber, tem um grande cargo em uma cidade aqui do interior do Maranhão. Pois é… Pois é…

Que “deus” é esse de um pastor aqui de São Luís, pego com outra mulher no motel enquanto pregava “retidão moral” no púlpito, tendo a esposa ao lado? E era aplaudido, aclamado e louvado como um “homem de deus”. Que “deus”?

Que “deus” é esse dos políticos que usam “Seu Santo Nome em Vão” em benefício próprio, usando isso como uma rede de pesca para puxar o máximo possível de mentes amedrontadas? Pessoas simples que só gostariam de uma palavra de conforto? Elas até obtém essas palavras, porém, ao custo de medo, paranoias, doutrinação, preconceito…

É como se dissessem: “Sim, Deus é amor, mas só se você for igual a mim e pensar como eu.”

Que “deus” é esse?

Mas confesso qual é o meu temor

Essa luz que ofusca limite

Essa gente que olha pro céu e tropeça no chão

Eu sei que estou sozinho nessa. Eu me sinto como um idiota com um rodo na mão tentando empurrar as ondas do oceano. É burrice. Não vou mudar ninguém. Pelo contrário, sempre que falo sobre isso eu recebo pedradas, xingamentos, textos gigantescos de pessoas que vestem a carapuça que por vezes não é para elas; recebo olhares de dúvida e até mesmo já chegaram a me culpar pelas coisas que passei, a famigerada questão de “Às vezes, Deus escreve certo por linhas tortas…” ou a odiosa “Deus só dá a cruz que a pessoa pode carregar”. Sei…

Não entendo como as pessoas conseguem ficar sentadas em uma igreja, ou um templo, escutando barbaridades, sem notar que há algo de errado ali. Isso me entristece. É, sim, eu sou idiota. Certa vez, alguém me disse que eu era um “esquerdista viado lacrador”. E a pessoa que disse isso vive na igreja de joelhos rezando no grupo “Mães que oram pelos filhos”. Eu já vi o filho dela e tive pena dele. Está doutrinado, escondido, tentando parecer o que não é, rezando fervorosamente para um “deus” que vive dentro dele, mas que, talvez por aceitá-lo como ele é, não lhe serve.

Aquele cara quer o deus do tapa, do grito, do berro; o “deus” belicoso que o fará “deixar de ser gay”.

As pessoas são hamsters correndo na roda do medo na tentativa de alcançar um deus que as deixará ainda mais amedrontadas, enquanto o deus dentro delas aguarda de braços abertos por um abraço que demora a acontecer.

É triste.

Música: Credo, Elza Soares (Rildo Alexandre Barreto Da Hora / Sergio Cabral Santos)

Álbum: Deus É Mulher, 2018

Minha fé quem faz sou eu
Não preciso que ninguém me guie
Não preciso que ninguém
Me diga o que posso e o que não

Minha crença eu te conto de cor
Não preciso que ninguém me ensine
Que o amor é o deus que não cabe na religião

Minha fé quem faz sou eu
Não preciso que ninguém me guie
Não preciso que ninguém
Me diga o que eu posso e o que não

Minha crença eu te conto de cor
Não preciso que ninguém me ensine
Que o amor é o deus que não cabe na religião

Credo, credo
Sai pra lá com essa doutrinação
Credo, credo
Eu não quero o medo me dando sermão
Credo, credo
Falta “sim” nessa tua oração
Credo, credo, credo

A mentira eu conheço tão bem
Não preciso que ninguém me aponte
Um castigo que serve só para vender o perdão

Mas confesso qual é o meu temor
Essa luz que ofusca limite
Essa gente que olha pro céu e tropeça no chão
A mentira eu conheço tão bem
Não preciso que ninguém me aponte
O castigo que serve só para vender o perdão
Mas confesso qual é o meu temor
Essa luz que ofusca limite
Essa gente que olha pro céu e tropeça no chão

Credo, credo
Sai pra lá com essa doutrinação
Credo, credo
Eu não quero o medo me dando sermão
Credo, credo
Falta “sim” nessa tua oração
Credo, credo, credo

Credo, credo
Sai pra lá com essa doutrinação
Credo, credo
Eu não quero o medo me dando sermão
Credo, credo
Falta “sim” nessa tua oração
Credo, credo, credo

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Written by Henggo

Escritor, Revisor & Ghostwriter. Coleciona trilhas sonoras e nome estranhos de pessoas enquanto espera a chegada dos ETs. Saiba mais em linktr.ee/Henggo

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