A força da simplicidade de uma santa sem rosto

Nas entranhas dos campos longínquos no interior do Maranhão, realidade e mistério em torno de uma santa do povo.

Henggo
4 min readDec 6, 2024
Vê-se a foto de uma multidão rezando em um cemitério que se localiza debaixo de um cajueiro gigantesco cuja copa serve como abóbada natural para os romeiros.
O cajueiro nas Almas Colodianas. Arquivo pessoal.

LONGE DA VIDA TOMADA PELO CAOS, DAS GUERRAS DOS EGOS DOS TOLOS; das luzes das telas que cegam os homens, dos fios da internet que revela e destrói; distante das ruas onde transita a violência, dos shoppings cheios de soberba; das cidades, vilas, povoados e suas mundanidades; a quilômetros das roupas de marca, joias, sapatos, amores, tremores, há uma terra isolada, cercada por mato, escondida das vistas, protegida por um labirinto de estradas de areia. Ali, nada fica imune às chamas, velas queimam até formar rios de cera, a copa de um cajueiro serve como a cúpula de uma igreja e um corpo seco rejeitado pela terra foi absorvido por uma árvore.

Em uma terra de mistérios, com cinzas que flutuam pelo ar e onde um tapete de folhas secas acomoda os pés cansados dos romeiros, recende no vento o canto sagrado da fé de um povo por uma figura nomeada pelas línguas de simplicidade. Sem o aval de luxo do Vaticano, afastada da riqueza que corrompe os que se dizem “doutores da fé”, reside a força das memórias de uma cigana hoje abraçada pelos pobres. É Claudiana o seu nome, sim. Mas também é Colodiana, Clodiana, Codiana, Claudina… E tantas e tantas variações de um mesmo chamado de esperança.

Muitos insistem no que defendem ser “o nome correto”. Porém, mais importa um nome em sua perfeição silábica, ou mais importa o intuito de se achegar para junto da fé? Buscamos demais pelo belo, pela frivolidade inalcançável da perfeição, enquanto nessa terra sem nada, terra de pés descalços, a imperfeição de um nome nos pede para aceitar o banal.

Nesta terra cheia de mangabeiras, está enraizada história de uma mulher com seu bebê. Vinda pelas bandas das estradas de Icatu, a caravana de ciganos da qual ela fazia parte rumava de terra em terra, envolta em misticismo e mistério. Até que, em determinado ponto, a mulher se desgarrou do seu grupo para ter a criança e perdeu-se. Buscou por ajuda, sem obter, e acabou desaparecendo. A procura por ela começou e durou por dias, até a encontrarem, já morta, no lugar onde hoje dezenas cantam louvores à santa icatuense. Quando se aproximaram do cadáver, testemunharam aquele que seria o primeiro milagre de Claudiana: o corpo da cigana já estava putrefato, entregue ao abraço da Morte, mas a criança ainda estava viva, deitada junto ao cadáver da mãe, mamando em um dos seios ainda intacto, ainda vertendo vida.

A história correu de boca em boca, povoado em povoado, mas sem espetáculos. Talvez por se tratar de uma cigana, talvez por vir do interior do Maranhão; ou então, muitas décadas atrás, apenas por não ser possível a difusão mais rápida das notícias, o fato é que a terra de repouso de Claudiana se manteve Colodiana. Resguardada pelo povo, a cigana que protegeu seu bebê mesmo depois da morte virou santa por aclamação popular.

Santa Almas Colodianas, a santa de Icatu.

Há algo de sereno no silêncio dessas matas, uma brisa de reflexão que quase me faz sucumbir ao desejo de deitar neste areal para sentir e observar. Diante de velas que queimam num piscar de olhos e das rajadas de vento que fazem as árvores cantarem melodias de outrora, como não ser grato por ainda estar vivo depois de tantas mortes? Sinto um arrepio perante a lembrança da “Ave Maria” durante a parada cardíaca em uma mesa de cirurgia de apendicite; a brandura da “Oração de São Francisco” quando fiquei acordado durante a cirurgia de ginecomastia; sinto cada afago de um Algo Maior que me abraçou em cada cirurgia, morte, cicatriz. Claudiana me remete à força de viver mesmo após a queda de uma escada, uma tentativa de afogamento, a queda da garupa da moto no meio da estrada; as agressões, as dores, o estupro. Há vida aqui e ali; dentro e fora.

Claudiana conforta.

Tenho minhas ressalvas em relação às religiões e não me considero cristão. Porém, reconheço a força e a beleza quando pessoas unem suas mãos e vozes para rezar o “Pai-Nosso”. Aqui, nesta terra de mistérios, em meio a um mundo em queda, machucado, incendiado, encharcado, seco e bombardeado, as mãos unidas diante das lembranças de uma cigana pobre se tornam um gesto ainda mais poderoso.

Sim, essa é uma terra de milagres. Há corpos diversos, diferentes jeitos de falar, andar, rezar, brincar; diferentes idades, realidades sociais, sexualidades, objetivos, pecados, religiões, origens. E todos estão juntos. Milagres internos, milagres externos, choros visíveis ou contidos; milagres de outrora, promessas feitas, desfeitas, refeitas, não importa. Seja você quem for, venha de onde vier, há uma santa no interior das entranhas do Maranhão, escondida nas matas fechadas dos campos de Icatu; santa do povo, simples, sem rosto, sem luxo, sem imagem; sem capela, escapulário, medalhas, pinturas, sem nada. Nada. Seu nome é Claudiana ou Colodiana, não importa. Chame-a como quiser.

Santa Almas Colodianas verte do seio da vida o milagre de um abraço na alma.

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Written by Henggo

Escritor, Revisor & Ghostwriter. Coleciona trilhas sonoras e nome estranhos de pessoas enquanto espera a chegada dos ETs. Saiba mais em linktr.ee/Henggo

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