A gangue da Bota Preta
AH, A GANGUE DA BOTA PRETA… Como não amar tamanha “organização criminosa”? Muitos dirão que viram ou até mesmo que participaram deste evento de proporções megalomaníacas. Eu, infelizmente, não tive tal oportunidade. Mas também fui influenciado por esta lenda.
São Luís, Maranhão, começo dos anos 2000.
Não lembro como os boatos começaram, mas o fato é que ganharam proporções inimagináveis. Havia uma gangue de adolescentes rondando pela cidade, invasora de colégios, causadora de tumultos e ditos “sacrifícios”. No começo, diziam que seu objetivo era apenas “causar”, sabe? Assustar alunos, intimidar professores, essas coisas. Contudo, como diz o ditado: “quem conta um conto aumenta um ponto” e foi aí que as coisas degringolaram de vez.
Primeiro, disseram que eles haviam sequestrado alguém. Depois, surgiu o boato de que tinham invadido uma escola pública e feito reféns, veja só! Provas, testemunhas do ato? Pra quê? Isso é pros fracos! Semanas adiante e a gangue já era poderosa ao ponto de roubar os carros dos professores.
Mas o auge da conversaria veio quando estabeleceram o “real” objetivo da Bota Preta: o bando invadia as escolas porque precisavam de alguns (sim, alguns!) mamilos de mulheres e também algumas orelhas de homens.
Mamilos e orelhas…
Orelhas!
Por Deus, quem precisa de orelhas?
Enfim, a história se alastrou por boa parte das escolas da ilha e é aí que eu entro. De uma hora para outra, inventaram que a “Gangue da Bota Preta” havia mudado suas táticas. Afrontosos, “decidiram” que seria mais impactante pegar mamilos e orelhas dos estudantes das grandes escolas particulares de São Luís.
Nós, estudantes do Colégio Girassol, filhinhos de papai, classe média alta, criados para ignorarmos os problemas dos menos abastados e só atentarmos para eles quando começavam a rondar os muros dos nossos privilégios, ficamos alarmados, é claro.
Muito alarmados.
Os dias seguintes eram de cochichos e de sussurros. Saíamos dos carros e corríamos para dentro do colégio com olhares lançados para todos os cantos. Os boatos em nosso encalço.
“Colégio tal foi invadido ontem, sabiam?”, dizia um.
“Agora, são 50 mamilos e 100 orelhas…”, revelou outro.
“E a pele.”
“A pele?”, perguntaram.
“É… eles querem a pele de 10 alunos para fazerem as botas. É, sim.”
“Mas não fica muito fina só com pele?”
“Que nada! Fica é macio!”, deduziam.
Então, veio o golpe!
Era uma quarta-feira qualquer de um dia qualquer. Estávamos no meio do recreio da quinta série (hoje 6º ano do fundamental), quando vimos os guardas correrem para o portão principal. E, meu Deus!, trancarem! Depois, fizeram o mesmo com os demais acessos ao colégio. Eles nunca (nunca, nunquinha!) trancavam os portões. Os coordenadores começaram a rondar pelos corredores, os olhos atentos a qualquer movimentação. Vendo aquilo tudo, só tínhamos uma conclusão:
“A Gangue da Bota Preta está vindo para a nossa escola!”
Foi um desespero. Alguns dos meus colegas começaram a tremelicar feito vara verde. Os olhos de uma menina se encheram de lágrimas e ela correu para o banheiro. Um colega nosso começou a rir histericamente. Outro começou a fazer cálculos. Eu estava com o coração a mil.
O intervalo acabou e fomos para a aula, os sentidos em alerta. Vimos os coordenadores conversando com alguns professores, pareciam dar ordens. Enquanto esperávamos o reinício da aula, um carro de polícia passou na avenida, as sirenes naquelas alturas. Levamos um susto. Uma menina caiu da cadeira. Alguém disse que ligaria para a mãe.
Foram momentos de terror, havia uma confusão do lado de fora e então, veio o barulho na porta. Gritamos e o professor entrou na sala. Parou, olhou para nós, bando de filhotes alarmados, franziu a sobrancelha e deu início à aula. Não pareceu se importar com a tensão de um bando de guris de 11 anos de idade e mandou ver nos cálculos de Matemática.
“Insensível. Vil. Coração de gelo!”, pensamos.
Como ele não se compadecia de nossa dor? De nossos mamilos e orelhas? Por Deus!
E as horas passaram. Deu 9 horas, 10, 11, 12:40h. O sinal de saída tocou. Vimos os alunos das demais salas saindo como se nada tivesse acontecido. Nós, testemunhas dos preparativos da escola frente a um iminente ataque da Bota Preta, parecíamos sermos os únicos preocupados.
Arrumamos nossas coisas e descemos as escadas. Estava tudo calmo.
Quando estávamos perto da saída, aconteceu: ouvimos o grito de um dos guardas.
“Eles invadiram!”, alguém gritou.
Pensa em uma correria? Algumas pessoas berraram. Houve confusão. Ninguém sabia o que fazer.
E tudo por causa de dois cachorros de rua que tinham invadido a escola e agora corriam faceiros pelo meio dos alunos. Só cachorros. Por isso, haviam fechado os portões.
Suspiramos aliviados e meio envergonhados por termos entendido tudo errado. Seguimos nossas rotinas como se nada tivesse acontecido.
“Gangue da Bota Preta… que besteira!.”, disse um garoto.
Sorrimos e fomos para nossas casas.
No dia seguinte, a polícia confirmou a prisão de um “grupo de vândalos” nos arredores da escola. Perguntamos aos coordenadores, mas eles desconversaram. Disseram que era “coisa da nossa cabeça” e prosseguiram com a história dos cachorros.
Conversa encerrada, ficamos com caras de bobos enquanto o portão principal e as portas laterais do colégio voltaram a ser abertas naquele dia. Ao nos observar, o segurança deu um sorrisinho de canto de boca e piscou o olho.
Ele usava botas pretas.
NOTA: a “Gangue da Bota Preta” é uma das lendas urbanas de São Luís. Na verdade, o grupo existiu, mas nada tinha de criminoso: não passavam de adolescentes que se reuniam (calçados com botas pretas) para irem a festas. O problema é que pessoas de fora do grupo começaram a usar o nome “Bota Preta” para cometer atos ilícitos. E aí, a fama se espalhou, a polícia agiu e o grupo original acabou.
Ficaram apenas as memórias.
Quer saber mais sobre a “Gangue da Bota Preta”? Acesse o link abaixo com uma matéria especial do jornal “O Imparcial”: