A importância da acessibilidade nos livros
O simples ato de descrever a capa de uma obra já é um movimento de inclusão.
VOCÊ TERMINA DE ESCREVER UM LIVRO, FAZ TODO O TRABALHO DE REVISÃO E DE REESCRITA, FICA SATISFEITO. Então, começa a pensar na capa, busca por uma imagem, faz a edição, alegra-se diante do resultado e publica a obra. O passo seguinte é receber a atenção dos leitores e o feedback diante de tanto esforço. E é neste ponto que entra uma questão pouco percebida: você já pensou se o teu livro é acessível? Se todas as pessoas que o têm em mãos conseguem apreciar a obra por completo? Sendo mais direto: o teu livro tem acessibilidade para as pessoas cegas?
Eu nunca havia parado para pensar nessas perguntas. Seja pela literatura, seja imerso no jornalismo, a rotina acima descrita começou a fazer parte da minha vida e logo eu entrei no que chamo de “modo de edição mecânico”: eu fazia o trabalho posterior à escrita sem refletir sobre os meandros do processo, em especial, sobre acessibilidade. E há três pontos peculiares nessa jornada.
O primeiro é o fato de eu ler muitos livros de uma autora do Wattpad | Amazon chamada Viviane Vresk. A escritora faz um trabalho de descrever todas as imagens e tem o cuidado de tornar o texto dela mais fluido para as pessoas com algum grau de deficiência visual que precisam usar, por exemplo, leitores de tela. Porém, confesso, eu via esse trabalho da Viviane sem de fato compreender o alcance desse ato. Achava bonito, mas (e aqui entra o fator da insensibilidade), não era algo que me tocava.
Não era.
A conexão com esse cuidado literário demonstrado por Viviane veio pelo segundo fator. Há cinco anos, eu descobri ter ceratocone, uma doença degenerativa da córnea. Até então controlada, no fim de 2017 a doença começou a se agravar e culminou que, um ano depois, entre outubro de 2018 e fevereiro de 2019, tive de fazer cirurgias nos olhos. Sem poder ler durante os meses de recuperação, descobri os leitores de tela do celular e do computador. Foi só aí que eu compreendi o poder e a verdadeira beleza do que a Viviane Vresk fazia.
Quando senti na pele a necessidade e a diferença que a descrição de imagens faz, eu baixei a cabeça e admiti o meu erro. Mas a minha motivação ainda não estava completa. Faltava uma peça neste quebra-cabeça.
Você acredita em destino? Eu sim. O terceiro ponto de virada veio quando, ao entrar no grupo “1001 Resenhas”, no WhatsApp, eu conheci a autora do Wattpad Laís Corrêa, que tem deficiência visual. Ao conversar com ela, entender a rotina, as dificuldades, o processo de escrita pelo qual ela passava, eu me senti inspirado a transformar todos os meus textos do Wattpad para descrever as imagens.
E devo dizer: é um processo empolgante.
Eu comecei com alguns contos mais simples que não continham imagens no corpo do texto. Pegava a capa, abria em um tela e começava a descrever. Graças a Vivi Vresk, aprendi que o ideal é você começar a descrição no sentido da leitura: da esquerda para a direita, de cima para baixo. Descreva o máximo que puder, mas de forma fluida: o fundo da imagem, as letras, as cores das letras, a roupa, objetos, posição, etc. Contudo, claro, você pode (e deve) adaptar esse processo para facilitar o absorção do conteúdo daquela imagem.
Por exemplo, uma das primeiras que fiz foi a do conto “Uma Lição de Ano Novo”…
Descrição da capa: A imagem de fundo é a foto de uma praia ao amanhecer. No horizonte, vê-se montanhas. À frentes delas, o mar em tons de azul. Pessoas banham nas ondas. Em primeiro plano, já na praia, há duas rosas fincadas na areia. As hastes são verdes, com folhas caídas para os lados. A rosa da direita tem a cor vermelha, enquanto a da esquerda tem a cor branca, quase amarelada. No alto da capa, lê-se, em letras brancas, a apresentação “Série Breves Histórias” seguida do nome do autor, “Henggo”. Um pouco mais para baixo, em letras pretas, vê-se a primeira parte do título “Uma lição de” seguida, abaixo, pelo restante da frase “Ano Novo”, formando “Uma Lição de Ano Novo”. Logo abaixo da palavra “Novo” lê-se a frase “O amor é a melhor promessa…”.
Pelo fato de na capa não haver elementos necessariamente à direita ou à esquerda, tive de adaptar o processo descritivo para conseguir causar a sensação de imersão nessa imagem. Um exemplo de uma em que o padrão direita-esquerda foi seguido com mais rigor, foi a capa do conto “95 Filmes para o fim do Mundo”…
Descrição da capa: Na parte superior vê-se o ceu azul e baixo os prédios de uma cidade. É uma foto que nos permite ver o topo dos edifícios, mas não as ruas. Acima, à esquerda, veem-se bolas de fogo que caem do ceu. Elas deixam rastros de fumaça preta e atingem a cidade. No meio da capa, à direita, pode-se ver uma explosão fruto do choque entre um dos meteoros e um prédio. No canto inferior esquerdo, há uma triângulo preto próximo à borda da capa. Dentro dessa figura geométrica está em letras brancas o título do conto “95 Filmes para o Fim do Mundo” e, abaixo dele, o nome do autor “Henggo”.
Contudo, como já foi dito, isso não se restringe às capas. Se você quiser dar acessibilidade à tua obra, descreva todos os elementos visuais. Em “Conversas do Inconsciente”, o meu diário de sonhos, cada capítulo vem acompanhado de um imagem referente ao sonho que tive naquele determinado dia. E, é claro, há todo um processo para descrevê-las. No sonho datado de 17 de março, por exemplo, temos o seguinte:
#pratodosverem | Descrição da imagem: Fotografia com destaque para a escuridão. No único ponto de luz da imagem, ao centro, vê-se parte de um cachorro preto com pelos brancos no peito. Só é possível enxergar um dos olhos do animal, parte do focinho e a língua para fora. O cão usa uma coleira e parece agressivo.
Simples e prático, não é? Mas algo que descobri é o fato de a acessibilidade ir muito além da descrição de imagens.
Ao usar o leitor de telas, notei o quanto a tecnologia esbarra em coisas simples como palavras mal redigidas, vírgulas nos lugares errados, termos estrangeiros, falta de pontuação, ausência de travessões, diagramação confusa… Portanto, cuide também da estética do texto. Não faça de “qualquer jeito”. Quando uma pessoas sem deficiência visual lê algo errado, ela pode, por exemplo, apenas ignorar. Por vezes, a nossa mente até faz as correções ao longo da leitura. Contudo, um leitor de telas não consegue fazer isso e, literalmente, estraga a imersão. Quando você escuta o teu texto mal redigido nota os “engasgos”, a pausas, a estranheza. Quer uma dica para resolver isso? Ao terminar uma parte, leia em voz alta. Isso te ajudará a notar esses espinhos e aperfeiçoar os detalhes.
Outras dicas são:
· Traduza os termos em inglês que não são comuns no nosso dia-a-dia. Por exemplo, “Hey, brother!” (Oi, amigo!) é mais usual do que um “C’mon, brother. What’s up?” (E aí, cara? Como está?), principalmente devido ao uso do apóstrofo;
· Cuidado com o espaçamento. Se você deixar grandes espaços entre os parágrafos, a sensação durante a audição é de que ou o texto acabou ou o leitor de tela travou;
· Escreve no Wattpad? Como a plataforma oferece o recurso de inserir mídias no corpo do texto, não custa nada indicar que há um vídeo, por exemplo. Uma simples mensagem de “Abaixo, vídeo da música” ou “Abaixo, vídeo e tradução” são pequenos detalhes que ajudam muito.
O mote de tudo isso, acima de tudo, é estender a mão. Quando você cria o hábito de ajudar o outro e torna o teu trabalho mais acessível, o ganho é para ambos os lados. Você que escreve tem a chance de treinar o lado descritivo, por exemplo. O outro que lerá, terá a oportunidade de imergir naquele texto ao máximo, usufruindo de todas as possibilidades arquitetadas pelos autores. É criar conexão, criar coletividade; proporcionar democracia. Faça isso. E, quando fizer, não esqueça de aderir ao movimento #pratodosverem. Crie capítulos com essa hashtag, descreva as imagens e difunda esse ato.