A importância do silêncio no texto
Compreender as nuances do silêncio — e como preservá-lo no texto — é uma qualidade por vezes esquecida.
VIVEMOS EM TEMPOS EM QUE A RAPIDEZ DAS COMUNICAÇÕES FOI DRENADA PARA VÁRIOS CONTEXTOS. Se há dez anos a correria dos bytes e dos metadados encantava e assustava, hoje em dia esses parâmetros cada vez mais recebem adjetivos como “lentos e insuficientes” diante de um dia-a-dia envolto por tarefas e falta de tempo. Tal situação, é claro, influencia as mais diversas áreas de nossas vivências e o hábito de ler não passou incólume por essa jornada. Sem paciência, sem momentos para relaxar, sem uma cultura de apreciação, a leitura viu-se diante de dois caminhos. Por um lado, a disputa contra estímulos visuais, digamos, “mais empolgantes e coloridos” do que letras em um fundo branco (ou amarelado, ou preto, ou vários e vários tons). Por outro, a exigência por tramas mais “rápidas, curtas, diretas” e “sem muitas divagações”. Em meio a esse turbilhão, o silêncio da trama foi deixado de lado.
O silêncio é um momento de intimidade autor-leitor. Imagine-se deitado em uma cama com a sua melhor amiga ou com o seu melhor amigo. Imagine agora que vocês não têm pudores e são capazes de falar sobre tudo, sem meias verdades ou medo de julgamentos. Os segredos mais profundos, os anseios nunca ditos, os desejos mais sórdidos, tudo é posto para fora. Pode parecer assustador, mas, sejamos sensatos, é um momento de conexão. Agora, imagine como isso pode ser usado para conectar público e trama. É enriquecedor.
Observe o trecho a seguir, retirado do romance “Precisamos Falar sobre o Kevin” (2007) da autora Lionel Shriver.
“Como você sabe, sempre tive paixão por mapas. Já cheguei a supor, algumas vezes, que diante de um ataque nuclear iminente, ou de uma invasão estrangeira, as pessoas com mais poder de fogo não serão os representantes da supremacia branca, munidos de armas, nem tampouco os mórmons com suas sardinhas em lata, e sim os cartograficamente informados, que sabem qual estrada leva às montanhas. Por isso, a primeira coisa que faço, ao chegar a um lugar, é comprar um mapa — isso quando já não tomo um avião munida de um Rand McNally. Sem um mapa, eu me sinto vítima, perdida. Assim que me vejo com um nas mãos, tenho um controle bem maior da cidade que a maioria de seus moradores, muitos dos quais não fazem a menor ideia de onde estão quando saem da órbita restrita da padaria, do açougue e da casa de Luisa. Faz muito tempo que me orgulho de meus poderes de navegação porque, na verdade, sou fantástica na hora de traduzir duas dimensões para três e sei usar os rios, as ferrovias e o sol para me situar. (Desculpe, mas sobre o que mais posso me vangloriar agora? Estou ficando velha, e aparento a idade. Trabalho numa agência de viagem e meu filho é um assassino.)” (SHRIVER, 2007. p. 185)
“Precisamos Falar sobre o Kevin” é um livro repleto desses “silêncios”. Em outras palavras, são momentos de fluxo de consciência nos quais o personagem transita por pensamentos, suposições, devaneios, ideias, tudo de modo espontâneo e contínuo, sem a paralisia do texto em prol de uma descrição. O autor David Lodge chama a isso de “Monólogo Interior” e afirma:
“[…] é como usar fones de ouvido plugados diretamente ao cérebro de outra pessoa e monitorar essa gravação interminável de impressões, reflexões, questionamentos, memórias e fantasias do sujeito à medida que sensações físicas ou associações de ideias os motivam.” (LODGE, 2011, p. 57)
No trecho de Shriver, o fluxo de consciência da personagem Eva Khatchadourian enfatiza a personalidade da mulher enquanto ela arruma o escritório. Eva é uma bem-sucedida executiva de uma empresa de elaboração de guias de turismo e tem fascínio por mapas. Em uma narrativa mais “ágil”, mesmo que em formato de cartas, como é o caso de “Precisamos Falar sobre o Kevin”, o comum seria dizer algo como: “Os mapas eram a minha vida. Eu os via como parte de mim e ficava em êxtase quando meus dedos passavam da Europa para a Ásia e dali mergulhavam sem pudor rumo à Oceania”. Contudo, perceba como, ao entrarmos no fluxo de consciência da personagem, nós não apenas sabemos dessa paixão como também vemos as nuances da sra. Khatchadourian. Nós, leitores, somos espiões de certa sordidez da executiva que uma mera descrição não conseguiria nos proporcionar. A autora mostra a paixão de Eva ao trazer como essa mulher se sente na ausência dos mapas, o conhecimento técnico que ela tem dos lugares, a importância que dá aos detalhes. Principalmente, vemos a arrogância e a petulância de alguém que se acha superior os habitantes de um lugar e o baque diante da idade e da situação com o filho. Sem contar a metáfora dos mapas: Eva é capaz de se localizar em qualquer lugar do mundo, mas é incapaz de traçar rotas que a levem a ter sentimentos de amor por Kevin.
Percebeu a riqueza?
Momentos de contemplação de uma história contam muito mais sobre os personagens do que páginas e mais páginas de descrição. A descrição por si só, mecânica, sistemática, torna-se enfadonha. Um momento de contemplação, por sua vez, quando bem elaborado no momento certo, consegue abraçar o público e causar uma sensação de entrega, algo quase incômodo ao pensarmos que estamos a invadir pensamentos alheios. Além disso, o silêncio da narrativa tem um importante papel de diminuir o ritmo da trama, um jogo de estímulo e relaxamento que deve ser arquitetado para a condução dos leitores.
O Silêncio e a Descrição
Enquanto a descrição soa como uma espécie de pausa na narração, como se o tempo narrativo estancasse para que o narrador descreva certo ambiente ou mostre alguma ação, o silêncio (o “Monólogo Interior”) é um ato contínuo e atrelado ao decorrer da história. Enquanto dirige por uma rua, por exemplo, o personagem passa por lembranças da vida motivadas por uma loja, uma árvore caída na calçada que está ali há duas semanas, suposições sobre o desvio da verba pública, a possibilidade de chover ou não e, ao frear quase em cima de um carrinho de bebê, angustia-se diante da iminência da paternidade por que a amante está grávida, mas a esposa não pode ter filhos. Em outros termos, é quase um momento de devaneio do personagem que serve ao propósito de impulsionar a trama. Faça desses momentos pequenas “iscas” para o seu leitor. Use o silêncio para deixar pistas. No exemplo acima, o vislumbre da árvore pode ser um gatilho para que o personagem calcule se o filho é realmente dele. O último encontro com a amante foi há duas semanas e, do quarto de hotel onde os dois estavam, ele lembra de ter escutado quando as raízes estouraram e a árvore despencou.
É um texto contemplativo, aparentemente sem importância, mas que, nas entrelinhas, costura nuances da história desse personagem.
Agora, atente para um detalhe fundamental: enquanto a descrição pode ser usada para indicar e acelerar o fluxo do tempo ao “passar por cima” de certos detalhes, o silêncio pressupõe ações contínuas e mais lentas. Imagine uma cena: a esposa do nosso personagem acima inventado espera por ele sentada no sofá da sala e percebe algo de estranho. Em um exercício descritivo, teríamos algo como:
“Da janela, Yvone observou o vaguear de Brum pela garagem antes de ele entrar em casa. Entrou, sorriu para ela, perguntou algo sobre os noticiários e passou a mão pela testa ao reclamar do calor. Ela olhou para o visor do ar-condicionado e meneou a cabeça diante dos 20ªC. Brum tornou a sorrir, sem jeito. Aproximou-se da esposa, deu-lhe dois tapinhas no topo da cabeça como um dono faria com uma cadela e subiu as escadas. Por um instante, Yvone percebeu a ausência da aliança. Ele mancava do lado esquerdo.” (Autoral)
Em um esforço para trazer uma sensação mais contemplativa a essa mesma cena, poderíamos chegar a algo diferente…
“Yvone escutou o portão da garagem ser acionado e sentiu o coração disparar. Brum saira há algumas horas sem dizer para onde iria. Como sempre. Ela se levantou do sofá e parou por um instante ao ver que a apresentadora do telejornal tinha feito a mesma coisa. Passou os olhos pelo blazer usado pela jornalista e lembrou-se do quanto Brum a incentivava a se arrumar. Levou a mão aos cabelos e sentiu a aspereza. É, talvez aquilo justificasse alguma coisa. Assustou-se quando o portão se fechou e foi, pé ante pé, até a janela. O marido andava de um lado para o outro da garagem, as mãos na cabeça. Havia algo de errado com a perna dele ou era impressão dela? Talvez não. Ele já estava mancando quando saiu pela manhã? Ela também não se lembrava. De fato, mal se recordava da última vez que vira Brum daquele jeito. E que camisa florida era aquela, meu Deus? Ele não era um exemplo de sobriedade e de bom gosto? Onde arranjara aquilo? Voltou para o sofá quando ele se postou diante da porta e o tintilar das chaves encheu a casa. Cruzou as pernas, descruzou-as e tornou a cruzar. Como faria para parecer natural? Pegou uma almofada enquanto a fresta da porta se abria e, quando Brum já estava dentro de casa, Yvone jazia com parte do corpo apoiado no sofá para receber o sorriso do marido. Falso!, concluiu. Tentou sorrir de volta, mas os músculos da face não se dispuseram a ajudar. Uma gota saiu das raízes do cabelo de Brum e jogou-se rosto abaixo. Ele a aparou com a mão esquerda enquanto a direita ainda brincava com a chave do carro. “Está quente hoje.”, ele disse. Yvone afirmou e resvalou a atenção pelo visor do ar-condicionado. Vinte graus. Brum reclamava do aparelho por que, em uma cidade já tão fria, não fazia muito sentido ter um eletrodoméstico que só esfriava. Por que ele aceitara o presente da chefe, então? Escutou os passos dele pelo carpete e não teve tempo de recuar. A mão se moveu em direção a ela. O que ele está pensando? Brum passou os dedos pelo ressecamento dos fios e depois deu-lhe dois tapas na cabeça. Idiota. Ele costumava fazer isso com a cadela deles, Mika. Ela enojou-se quando Brum tornou a sorrir e gingou o corpo escada acima. Ele está sem a aliança? Sim, estava. E, sem ela, o marido mancava do lado esquerdo.” (Autoral)
Em ambos os casos, percebemos a relação de Yvone com Brum. Porém, é notório como os silêncios da segunda cena somados aos pensamentos da esposa trouxeram um tom mais dramático à situação. As nuances do marido que brinca com a chave do carro, o suor apesar do ar-condicionado, o fato de o aparelho motivar uma lembrança, o afago na mulher como fazia com a cadela, tudo soa mais impactante quando o Monólogo Interior de Yvone é explicitado na trama. Contudo, é importante ressaltar: o que o silêncio tem de enriquecedor, ele tem de lentidão. Por isso, é preciso parcimônia.
Acredito que um romance inteiramente fundado em silêncios será maçante, ainda mais em tempos de correria. Da mesma maneira, um romance recheado com descrições intermináveis também não é ideal, vide os primeiros capítulos da obra “A Sociedade do Anel” de J.R.R. Tolkien. Contudo, se usados em momentos chave, em situações em que os leitores já estejam integrados à trama, o silêncio pode ser um diferencial. Unido, então, às descrições e aos diálogos, você terá um quebra-cabeça instigante. Tente!
REFERÊNCIAS
LODGE, David. A arte da ficção. Trad. Guilherme da Silva Braga. Porto Alegre: L&PM, 2011.
SHRIVER, Lionel. Precisamos falar sobre o Kevin. Trad. Beth Vieira e Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2007.