A Redação do ENEM e a misoginia escancarada

Há algo de muito errado quando parte da sociedade se sente indignada diante de um tema que fomenta transformação

Henggo
5 min readNov 15, 2023
“Estrelas Surrealistas 001”, por Henggo

EU VI O EXAME NACIONAL DO ENSINO MÉDIO NASCER. Vi as brigas iniciais e como de pouco a pouco as universidades aderiram ao ENEM, testemunhei o crescimento da prova, participei dela em 2014, quando ainda era o cansativo formato de apenas um final de semana. De lá para cá, ano após ano, acompanhei a atenção dada ao tema da redação, representativo dos anseios da sociedade, um indicativo de para onde deveríamos olhar. Nesse sentido, a redação do ENEM 2023 apontou, escancarou e retorceu as entranhas dos brios de macheza que regem nossa sociedade.

Quando o tema da redação foi divulgado (“Desafios para o Enfrentamento da Invisibilidade do Trabalho de Cuidado Realizado pela Mulher no Brasil”), aqui e ali, no grande tribunal da internet, começaram a pipocar reações de escárnio. Algumas pessoas apontavam a “esquerdização” da prova, outras usavam o termo “doutrinação” e mais uma parte alegou que o ENEM havia entrado de vez na era da “lacração”. Também achei curioso como alguns dos comentários de pessoas mais “esclarecidas”, falavam que o tema precisava “especificar que se trata da questão do trabalho doméstico”.

Sinceramente, tudo isso é podre.

É podre porque cada uma dessas pessoas desconhece o próprio país. Podre, pois, tenho certeza, muitas dessas pessoas testemunham essa atividade de cuidado feito pelas mulheres e a ignoram. Denota podridão quando elas comparam esse “cuidado” ao “trabalho doméstico”, afinal, há uma noção na sociedade de que é mesmo função das mulheres, foi assim “desde sempre”, e isso não é um trabalho digno. É podre porque mostra como o machismo está tão, mas tão entranhado na cultura brasileira que basta você jogar luz sobre um “problema feminino” para muitos se sentirem ofendidos.

E um detalhe: percebe como eu uso a palavra “pessoas” ao invés de reduzir a “homens”? Eu o faço porque algo pouco discutido, percebo, é como muitas mulheres também imergiram no machismo, reproduzindo discursos misóginos, às vezes, sem nem terem consciência das próprias falas.

A misoginia está enraizada em nós. E a questão da invisibilidade desse trabalho de cuidado é um exemplo escancarado disso.

Venho de uma família de matriarcas, mulheres fortes, descendentes de escravos, criadas no quilombo de Jacareí dos Pretos, em Icatu, Maranhão. Durante toda a minha vida, eu vi na prática esse tema da redação do ENEM. Eu vi e vejo como as mulheres da minha família se desdobravam em cinco, seis, sete, vinte para cuidarem de pais, avós, bisavós, filhos. Testemunho até hoje como, diante de uma doença, por exemplo, são elas as primeiras a agirem e as últimas a descansarem. Mas não apenas na doença, como também na saúde. Isso acontece no cuidado com a casa, na educação dos filhos, no gerenciamento das finanças domésticas e até em relação aos animais de estimação. Aí, anos atrás, conversando com um amigo, ele argumentou:

— Tu falando assim, fica parecendo que os homens da tua família não fazem nada.

Pelo contrário, eles fazem, mas é pouco. E o fazem ainda naquela noção do “macho provedor da casa”: eu trabalho, trago dinheiro, estou cansado e tu ainda queres que eu cuide das coisas? Dessas besteiras?

Fica a pergunta: quem cuida de quem cuida do mundo?

Fui criado por uma mãe solo. Se não fosse por outras mulheres para lhe dar suporte, ela não teria conseguido. E como somos apenas nós dois em casa, ela me instruiu aos cuidados domésticos (esses mesmos que muitos atribuem a “trabalho de empregada”), mas foi além. Quando sua madrinha, responsável por criá-la e com quem residíamos, adoeceu de câncer, eu assumi parte dos cuidados. Aprendi a dar banho e aferir pressão arterial, acompanhava nas consultas, fazia a comida; trocava fralda, passava horas sentado em uma cadeira durante as sessões de hemodiálise e quimioterapia, dormia no hospital. E tudo isso enquanto corria com os estudos da escola. Porém, tenho consciência, o meu papel nem se compara ao fardo muito maior que a minha mãe tinha, trabalhando de dia até a noite, correndo de um lado para o outro, preocupada comigo, com a casa e com a doença da madrinha.

E sabe o que eu escutei um tio meu dizer para a minha mãe:

— Maria, tu estás estragando a vida desse menino.

Ou seja: ao invés de aplaudirem o fato da minha mãe ter dado consciência ao filho, criando-me “para a vida”, como se diz, a minha mãe foi criticada por me colocar para “fazer serviço de mulher”. Em outras situações, nas festas de família, cozinha cheia com os preparativos da ceia de natal, lá estava eu na pia, lavando louça, quando alguém chegava e dizia:

— Vixe, lavando louça com esse monte de mulher em casa?

Eu escutei, escuto e, infelizmente, sei que ainda escutarei isso.

Claro que não posso tomar um caso particular como base de sustentação para generalizar conclusões. Porém, quando o Exame Nacional do Ensino Médio traz esse tema, escancara as cortinas, exuma o que já está exumado, é impossível não ver a realidade individual como uma fração da realidade difundida.

Temas como esse provocam reflexão, mexem no status quo, são agulhas que tentam furar as bolhas sociais. Eles são ditos “polêmicos” porque obrigam as pessoas a pararem de apontar o dedo para os outros e começarem a apontar para si, a enxergar o problema dentro de casa. Um tema como esse vomita na cara da sociedade brasileira a rotina tripla, quádrupla, quíntupla, que muitas mulheres têm. E isso independente da condição financeira. Afinal, muitas diretoras de empresas, por mais que tenham funcionários domésticos, ainda assim têm que chegar em casa e verificar a rotina, ver os filhos, problemas na escola, dar atenção ao marido, o cachorro que precisa ir ao veterinário. E ainda finalizar algum trabalho que levou para casa. Por fim, deve suportar a exigência de ficar “apresentável” para o dia seguinte e manter-se bem cuidada, afinal, “homens envelhecem, mulheres apodrecem”, né?

E, na eventualidade do filho, na roda da fortuna da vida, virar um adolescente-problema, essa mesma mulher ainda deve encarar a enxurrada de chorume que, é claro, pode até respingar no pai, mas recairá em seus ombros. E, se o pai for ausente, também será direcionada para ela, afinal, “faltou a figura paterna”.

Quanto mais descemos na pirâmide social, a tendência é que a situação seja a mesma, ou até pior. Por exemplo, conheço mulheres da periferia aqui de São Luís que, além de todos os problemas supracitados, ainda ganham como bônus: a violência dos bairros onde moram, falta de água encanada, alagamentos na época das chuvas, creches que não funcionam, exames médicos que demoram meses para serem marcados, transporte público aos pedaços.

Fica a pergunta: quem cuida de quem cuida do mundo?

Em um país onde mulheres são mortas feito baratas, com um Congresso majoritariamente de homens brancos conservadores, e apenas uma mulher no Supremo Tribunal Federal, a revolta com um tema de redação mostra o desafio que ainda temos pela frente.

Mas, graças a Deus!, temos uma maioria de mulheres para cuidar de nós, né?

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Written by Henggo

Escritor, Revisor & Ghostwriter. Coleciona trilhas sonoras e nome estranhos de pessoas enquanto espera a chegada dos ETs. Saiba mais em linktr.ee/Henggo

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