A tristeza na exposição de Van Gogh
NA QUARTA-FEIRA (31, JAN.) EU FUI COM MINHA MÃE À EXPOSIÇÃO IMERSIVA BASEADA NA VIDA E OBRA DO PINTOR VAN GOGH. Já tinha visto fotos e reportagens sobre a experiência e fiquei muito curioso para mergulhar nela. Eu só não esperava que me sentiria tão estranho ali dentro. Veja: não por causa da exposição, longe disso. De fato, valeu cada centavo do ingresso ter a oportunidade de passar quase uma hora sentado ali, vendo detalhes que eu passei muito tempo estudando quando fazia aulas de pintura, ou quando estava no curso de Artes Visuais da UFMA. Quem conhece a vida de Van Gogh sabe que é de uma explosão criativa absurda e emocionante, dolorida e até injusta. Acredito que a exposição com suas projeções gigantescas e efeitos mil conseguiu transbordar esses sentimentos. Sabe qual foi o meu “problema”? A minha índole de enxergar as pessoas.
Eu vejo as pessoas.
Muita gente vai achar uma tremenda babaquice, eu sei. Mas quando você tem uma exposição dessa magnitude, com essa possibilidade de nadar pela vida e pela obra de um artista tão visceral como é Van Gogh, e prefere ficar vendo aquilo tudo através da tela de um celular, isso me machuca.
Tudo bem, talvez você que esteja lendo isso aqui não se incomode e até tenha revirado os olhos pensando “Ai meu Deus, mais um chato com esse papo de telas e celulares e as pessoas e blá, blá, blá…” Mas eu não consigo. É mais forte do que eu. Desculpe.
Eu não peguei o meu celular, só tirei uma foto quando estávamos saindo (no celular da minha mãe e por insistência dela). Passei boa parte do tempo conversando com mamãe sobre cada obra, as técnicas utilizadas, como era difícil fazer um quadro daqueles, a inserção de pigmentos e óleos, o processo demoradíssimo de secagem, o esmero, as pinceladas, os detalhes… E a maioria ao nosso redor fazendo poses para as câmeras, sendo iluminadas pelas luzes das telas de Van Gogh.
Van Gogh foi taxado de louco por ver o mundo do jeito que ele via e transpor isso para as pinturas. Agora, as pessoas veem Van Gogh através de telas com 15cm de comprimento, incapazes de experienciar aquela imersão e sedentas por migalhas de curtidas, mas elas não são taxadas de loucas.
Num mundo em decadência, a loucura é normalizada, não?
Eu vou ser justo: havia sim pessoas que estavam vivenciando aquilo. Muitas estavam sentadas, ou até deitadas no chão, quietas, observando, em silêncio. Porém, eram a minoria. Quando surgiram as famosas projeções dos girassóis, por exemplo, uma garota ficou pulando de um lado para o outro, esfregando-se na tela de projeção (o que era proibido) enquanto a colega filmava em todos os ângulos possíveis. Depois, ficaram as duas editando o vídeo no celular enquanto a vida de Van Gogh se desdobrava ao redor de ambas. Havia alguns poucos lugares para sentar. Duas mulheres escolheram um, deixaram as bolsas e garrafas d’água em cima para marcar o lugar, enquanto foram para o outro lado do galpão para, é claro, tirar centenas de fotos.
Teremos empatia com as pessoas idosas que gostariam de sentar? Acho que não. Afinal, quem enxerga pessoas idosas quando você precisa dar atenção à uma telinha na palma de sua mão, não é?
Um homem acompanhado da esposa, em uma demonstração de tédio, ficou vendo as mensagens do WhatsApp enquanto sua senhora fazia selfies com “A Noite Estrelada”. Ele só ergueu a cabeça para tirar uma selfie beijando a mulher e depois voltou aos seus afazeres. Outra menina se contorcia no chão para aproveitar as projeções e fazer um vídeo bafônico para o TikTok — eu sei por que ela disse em alto e bom som qual era o canal dela.
Um momento peculiar foi quando uma senhorinha bem idosa me flagrou olhando para toda a loucura ao nosso redor e balançou a cabeça na minha direção como se dissesse: “É, meu querido, estamos todos fudidos.”
E estamos.
Às vezes eu me pergunto como eu cheguei a esse ponto, sabe. Eu sou um Millenial, geração Y, nasci em 1988, vi a chegada da internet, uso computadores desde os 13 anos, convivo com redes sociais, mas sinto falta de não ter celular e nada dessa parafernália absurda; sinto falta de um tempo em que podíamos sair e ninguém nos achava. E adivinha: a vida continuava igual mesmo se você não soubesse o que estava se passando naquele exato momento. A gente saía, as pessoas não nos encontravam em casa, e vida que segue. Pegávamos um táxi e o motorista não colocava nossas vidas em risco por causa da droga de um celular. E o mais legal era que todo mundo entendia o conceito de “acho que ele não pode me atender agora, ligo depois”.
Depois. Graças ao WhatsApp, as pessoas esqueceram o significado dessa palavra.
Não, não sou contra as tecnologias. Como dizia o grande escritor Isaac Asimov, pai da ficção científica, é uma tolice lutar contra o inevitável tecnológico. O meu problema é que, claramente, todo esse apogeu tecnológico necessário se mesclou à uma sociedade cada vez mais apática e carente de atenção — uma sociedade que ainda não entendeu que essas carências e medos não vão ser supridas pelas redes sociais.
Eu vejo as pessoas.
Nas praças, shoppings, ruas; nos bancos, na minha família, em viagens que faço. Há um grito nos olhares. Se você anda de ônibus, por exemplo, olhe para as pessoas. Elas estão gritando. Sorrindo para as câmeras, mas seus olhos berram de desespero em uma realidade louca em que tudo dá a entender que você é obrigado, é obrigada, a ser uma espécie de mini influencer de sua vida medíocre.
Eu vou te passar um desafio que eu fiz há uns 10 anos e foi maravilhoso: passe uma semana sem redes sociais e veja se alguém sente tua falta. Não diga para ninguém que sairá. Nada de posts no Instagram, ou vídeos no TikTok dizendo que fará isso por uma semana, ou mensagens no WhatsApp. Apenas fique sem usar durante uma semana. Veja quantas pessoas sentem a tua falta. É simples.
Sério: só vive. De verdade. Creio que a exposição sobre Vicent Van Gogh é uma metáfora sobre a realidade: há cores aqui fora, há vida, música, canto, sons, almas, possibilidades. E se você parar um tempinho, você nem vai precisar que uma projeção dê um zoom em uma folha para que você note suas ranhuras: você vai percebê-las à olho nu. Como? Vivendo.
Uma amiga minha diz que muitos dos meus papos parecem “coisa de autoajuda zen” e que eu deveria ter nascido no século XIX. Eu concordo. Mas é exatamente essa “coisa de autoajuda zen” que me faz nunca ter tido insônia porque eu não preciso ficar com o celular grudado ao meu travesseiro, desesperado por notificações. E não estar em grupos de WhatsApp, nem mesmo o da minha família, e ter saído há tempos do Instagram, Facebook e afins.
É essa “coisa de autoajuda zen” que me fez chegar em casa e ir buscar cada uma das músicas que tocam na exposição porque eu prestei atenção a cada uma delas e as absorvi.
E é escutando essa trilha sonora enquanto escrevo este artigo que eu digo a você: experimente a vida, ou você vai ser que nem aquela menina que estava se contorcendo no chão. Quando ela saiu da sala de projeções, ainda editando o maldito vídeo para o TikTok, ela se virou para a amiga e perguntou:
“De quem é mesmo essa exposição?”.
Por favor, não sucumba.