Acordado durante uma cirurgia (ou Oração de São Francisco)

O #MemóriasMusicais de hoje é sobre dor, fé, autodescoberta e a capacidade de enxergar beleza em meio ao caos.

Henggo
8 min readSep 27, 2024
Arquivo pessoal.

EU NÃO TENHO RELIGIÃO. Venho de uma família cristã e é claro que fui criado com base em vários princípios do cristianismo. Fui batizado, ia às missas, participava de retiros para crianças, porém, desde que comecei a ter mais consciência social (e pessoal), algo me incomodava na religião; algo que até ali eu não sabia definir, nomear. A ironia das ironias é que o ponto de virada foi o Catecismo. Quando mais jovem, eu era ainda mais calado, com o adicional de ser submisso, envergonhado. Mesmo assim, eu já era dado a fazer perguntas firmes quando algo me incomodava. E foi em uma das aulas de Catecismo, quando a professora falava (doutrinava) sobre como Deus “fez os homens para a procriação”, que perguntei, então, por qual motivo Jesus não procriou, já que o objetivo dele seria vivenciar todas as camadas da experiência humana. A professora não respondeu. Depois, só por perguntar quem garantia que a Bíblia era o “livro certo”, por existirem centenas de outros livros tidos sagrados, ela quase me expulsou da sala. A incongruência entre as aulas sobre amor e empatia e o destempero diante dos meus questionamentos foi significativa. No dia da Primeira Comunhão, após os comes e bebes aqui em casa, eu virei para a minha mãe e, do alto dos meus 13 anos de vida, disse: “Essa palhaçada de igreja acaba aqui”.

Algo fundamental, perceba, é que usei a palavra “igreja” como sinônimo de “religião”, não de “fé”. Essa diferenciação é o ponto de equilíbrio deste relato.

Eu sempre tive uma ligação muito forte com a imagem simbólica de Nossa Senhora. Pela personificação da figura materna, sim, mas, com os estudos à medida que envelheci, pelo simbolismo dessa figura feminina que resiste apesar de imersa em um mundo patriarcal e machista. Tanto é assim que de uns 10 anos para cá eu me acostumei a dizer que sou alguém “sem religião, com fé em ‘algo maior’ e mariano”. É óbvio que isso faz a mente da maioria das pessoas entrar em colapso. Costumo dizer que a medida da fé não é o que outros dizem, ou preconizam, mas sim o que sentimos no silêncio de nossa existência — isso se a pessoa se permite a essa escuta internalizada. Nesse sentido, eu tenho convicção da minha fé, tanto que em um dos momentos cruciais da minha vida foi essa fé que me manteve são.

A Psicologia ensina que nós só nos conhecemos (e nos apercebemos no mundo) com base no olhar do outro. Nesse sentido, ali pela metade da adolescência, foi “graças” aos garotos que faziam bullying comigo que notei que tinha “peitos”, a condição médica chamada de ginecomastia — o aumento das glândulas mamárias masculinas. Foi um terror. As brincadeiras, piadinhas, apertões, tudo se somou a uma índole já fragilizada devido a outros traumas, abusos e agressões. Eu andava encurvado, usava camisetas super apertadas por baixo da roupa para esconder meus “peitos” e fugia das aulas de natação, que eu já praticava há 10 anos e amava. Eu me anulei bastante por causa disso. Some a ginecomastia a outros estresses da adolescência, pressões típicas dessa época da vida, e você terá um panorama de quão difícil foi. A condição me acompanhou durante toda a escola e na universidade, apesar de eu ter perdido quase 30 quilos e ganhado músculos. Quando finalmente decidi fazer a cirurgia, em janeiro de 2017, eu já estava quase com 29 anos.

Muitas pessoas me perguntam por que esperei tanto. Primeiro por uma questão financeira. A cirurgia de ginecomastia é muito cara e não é coberta pelo meu plano de saúde por ser considerada uma “cirurgia estética”, ou seja, sem prioridade. Segundo porque, antes desse procedimento, eu já vinha de 7 cirurgias, sendo que na de apendicite, aos 17 anos, eu tive uma parada cardíaca durante a cirurgia e na de simpatectomia (suor excessivo nas mãos), aos 18 anos, eu tive um micro despertar (guarde essa informação). Nesse sentido, havia um receio que duelava com a necessidade de finalizar esse capítulo da minha vida.

Depois de muita ponderação, já cansado de odiar meu corpo, cansado de me esconder por baixo de camadas e mais camadas de roupas, eu tomei a decisão. Assim, no dia 26 de janeiro de 2017, às oito horas da manhã, eu entrei na sala de cirurgia.

A minha admiração por Nossa Senhora ganhou outros tons quando eu, para escrever o terceiro livro da minha série “Daniel Gandim e as Árvores Mágicas”, mergulhei nos estudos sobre as práticas de culto pagãs de séculos atrás. O que hoje é chamado de “religião antiga” é um conceito guarda-chuva que engloba uma série de práticas que se baseavam no culto a duas, digamos, “divindades” da natureza: uma força feminina (a própria Natureza personificada naquelas figuras das chamadas “Vênus”, esculpidas nos tempos das cavernas) e uma força masculina (uma representação mais concreta da Natureza trazida pela figura de um cervo). Portanto, a “religião antiga” tem de um lado a Senhora, a Deusa-Mãe, Vênus, o Feminino, e do outro é complementada pelo Senhor, Cernunnos, Cornífero, o Masculino. O interessante é que as religiões que surgem posteriormente, em sua maioria, espelham essa dicotomia feminino-masculino. Apesar da polêmica em torno do assunto, é claro que no Cristianismo não seria diferente. Explico tudo isso para apontar como minha admiração por Nossa Senhora ganhou esse aspecto mais voltado para o intuito de ver na figura de Maria uma conexão com essa energia feminina da chamada “religião antiga”. E, sim, que se exploda o que dizem alguns “líderes religiosos” que têm a pachorra de se dizerem “detentores da verdade sobre a fé” e ousam explicar o inexplicável.

Insisto: não é sobre explicar, é sobre sentir.

Nessa minha admiração pela natureza, no meu sentimento de paz interior quando estou, por exemplo, no meio da mata fechada, é que vem minha ligação com a figura de São Francisco de Assis, tido como o “santo da ecologia”. Minha conexão vem mais ainda porque muitos dos ideais de São Francisco eram contrários ao que ele via na igreja, sendo que alguns o descrevem como “um católico devoto, porém, não um filho obediente da Igreja” (Blog Sr. Cariri); um revolucionário que primava por simplicidade em contraste à opulência da igreja. Diante de tudo isso, como eu não seria um admirador de São Francisco de Assis? Como eu não me arrepiaria diariamente com a Oração de São Francisco de Assis?

A maioria vê o Pai-Nosso, a dita “oração que Jesus nos ensinou”, como o suprassumo da beleza. Do alto da minha opinião fecal, eu discordo. O Pai-Nosso é uma oração de lamento e de súplica; de submissão de nossas ações (e suas consequências) a essa energia que intitulam “Deus”. Na minha visão, diferente do Pai-Nosso, a Oração de São Francisco de Assis é uma oração de humanidade e de empatia; de estender a mão mesmo que for a um inimigo, ser consciente do seu papel no mundo. São fundamentos que me comovem profundamente.

Onde houver ódio que eu leve o amor

Onde houver ofensa que eu leve o perdão

Onde houver discórdia que eu leve a união

Onde houver dúvida que eu leve a fé

Naquele dia 26 de janeiro de 2017, assim como aconteceu na cirurgia de simpatectomia onze anos antes, eu despertei durante a cirurgia, porém, com um detalhe: dessa vez, o meu despertar foi apenas 10 minutos após o início da cirurgia e não foi detectado pelo anestesista. Por quê? Porque o anestesista não ficou na sala. Ele fez os procedimentos iniciais, viu que eu havia apagado e foi embora.

Só que eu “não havia apagado”.

Basicamente, como explicaram depois, a anestesia geral manteve o meu corpo paralisado, mas, por algum motivo que até hoje não compreendo, a minha mente não. Por isso, durante quase duas horas e meia, eu senti cada corte, cada abertura, costura, agulhada, puxão, tudo sem conseguir gritar. Eu estava preso no meu próprio corpo. Foi algo semelhante ao que chamam de “paralisia do sono”. Para você ter ideia, quando eu já estava no apartamento, eu relatei ao médico toda a conversa que ele teve com os assistentes e mencionei até algumas das músicas que estavam na lista de reprodução dele.

Digo com toda a convicção: o que me manteve sereno durante essas duas horas e meia de terror foi recitar freneticamente a Oração de São Francisco de Assis. E, a meu ver, o mais interessante, como mencionei em relação ao Pai-Nosso, é que naquela manhã não surgiu em meus pensamentos uma oração suplicante, ansiando por ajuda; faminta por um milagre — o que seria o mais óbvio de se ansiar em uma situação como aquela. O que veio, pelo contrário, foram os versos da Oração de São Francisco de Assis clamando por empatia, respeito e serenidade.

Senhor, fazei com que eu procure mais

Consolar que ser consolado

Compreender que ser compreendido

Amar que ser amado

Pois é dando que se recebe

É perdoando que se é perdoado

E é morrendo que se vive para a vida eterna.

Algo muda quando você morre. Naquela cirurgia de apendicite, quando tive a parada cardíaca, eu tive uma EQM (Experiência de Quase Morte). Foram cerca de 3 minutos em que fui embora e tive a oportunidade de retornar, tendo como sequela “apenas” a perda de memória. Tanto é que, excluindo situações traumáticas, minhas lembranças até os 17 anos ficaram confusas por muito tempo, sendo parcialmente recuperadas pelas fotos que tenho do passado. Apesar disso, até hoje algumas coisas ainda são um borrão. Contudo, eu vejo esse momento da EQM como um fortalecimento para o que aconteceu anos depois nessa cirurgia de ginecomastia.

Enquanto lá, na parada cardíaca, eu fortaleci minha admiração por Nossa Senhora, aqui, acordado durante a cirurgia de ginecomastia, eu me atrelei, envolvi, mesclei-me mais ainda a São Francisco de Assis.

Depois disso aconteceram muitas coisas, desafios, quedas, recomeços, decisões delicadas — afinal, a vida prossegue. Mas, diante de todos os percalços, é curioso como a Oração de São Francisco de Assis serviu (e serve) como base de sustentação, elemento de serenidade, certeza de mortalidade, convicção de silêncio. Uma psicóloga enfatizou que eu poderia ter ficado com um trauma absurdo, porém, acho incrível como, ao pensar nessa cirurgia, a balança entre a tranquilidade e as memórias ruins pende mais para o primeiro prato.

Até hoje, mesmo nas madrugadas, quando acordo sufocado pelas lembranças do cheiro de éter misturado ao odor de pele queimada após o laser para cauterização, logo em seguida ao susto vem uma serenidade que me embala e me faz adormecer novamente. No limiar para voltar a dormir, minha sonolência começa com um verso muito simples:

Senhor, fazei-me um instrumento de Vossa Paz.

É bom estar em paz.

Oração de São Francisco de Assis” (origem atribuída ao próprio São Francisco de Assis), aqui musicado por Frei Gilson

Senhor, fazei-me instrumento de vossa paz
Onde houver ódio, que eu leve o amor
Onde houver ofensa, que eu leve o perdão
Onde houver discórdia, que eu leve união
Onde houver dúvida, que eu leve a fé

Onde houver erro, que eu leve a verdade
Onde houver desespero, que eu leve a esperança
Onde houver tristeza, que eu leve alegria
Onde houver trevas, que eu leve a luz

Ó mestre, fazei que eu procure mais consolar que ser consolado
Compreender que ser compreendido
Amar que ser amado
Pois é dando que se recebe
É perdoando que se é perdoado
E é morrendo que se vive
Para a vida eterna

Ó mestre, fazei que eu procure mais consolar que ser consolado
Compreender que ser compreendido
Amar que ser amado
Pois é dando que se recebe
É perdoando que se é perdoado
E é morrendo que se vive
Para a vida eterna

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Written by Henggo

Escritor, Revisor & Ghostwriter. Coleciona trilhas sonoras e nome estranhos de pessoas enquanto espera a chegada dos ETs. Saiba mais em linktr.ee/Henggo

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