Algumas pessoas não deveriam dirigir
Violência, falta de paciência e excesso de velocidade no trânsito são indicativos de uma sociedade que precisa de ajuda.
ALGUMAS PESSOAS NÃO DEVERIAM DIRIGIR. Essa é uma convicção que tenho desde que comecei a dirigir, há 18 anos. Durante todo esse tempo, ano após ano, o que mais vejo pelas ruas é ansiedade, violência, desespero, desumanidade; pessoas que pegam o carro e vomitam suas raivas e carências no volante, transformando o veículo em uma armadura, um falso mecanismo de empoderamento que se converte em uma arma. Associe isso a uma sociedade embrutecida e a uma malha viária desorganizada e temos um barril de pólvora cada vez mais perigoso.
Há um ditado que sempre escutei e diz: “Quer conhecer alguém de verdade? Dê poder, dinheiro ou um carro”. Cresci regido por essa frase, porém, com o passar dos anos, mais consciente sobre o meu entorno, comecei a notar um detalhe: o terceiro elemento desse ditado (o carro) aglutina os outros dois itens. Um veículo é um símbolo de poder e dinheiro, portanto, a depender da inteligência emocional (ou da ausência dela), um carro consegue transformar e transtornar uma pessoa.
Lembra da cena clássica da Disney que traz o personagem Pateta nessa situação? Ele acorda tranquilo, feliz, conversa com a família, toma seu café-da-manhã. Então, coloca o paletó, entra no carro e se transforma em um monstro atrás do volante. Lançado em 1950, o assustador é que esse curta-metragem completará 75 anos em 2025, porém, permanece atual. Estamos rodeados por monstros. Mais e mais. Em todo lugar.
Na minha opinião fecal, o carro exacerba o que a pessoa tem dentro de si porque essa caixa de metal é um invólucro que dá uma sensação de segurança. Desse modo, sempre que vejo uma pessoa “apressadinha”, “costurando” pelo trânsito, gritando, xingando, acelerando, meu primeiro pensamento é: “Meu Deus, que carência!”. Na condução de um veículo descontrolado, perceba, estão medos, brigas trazidas de casa, arrependimento de ter tido filhos, vontade e necessidade de ganhar mais dinheiro, doenças, desespero para chegar mais cedo no trabalho porque precisa sustentar uma casa; ausência de autoconhecimento, mania de impressionar os colegas, uma criança mimada que agora é um adulto monstruoso. Tenho convicção de que por trás desses volantes há muita dor, muitas coisas não faladas, guardadas, ignoradas, apagadas; cicatrizes, machismos, pressões sociais, pressões familiares, estereótipos sem sentido.
Penso que, por trás desses volantes, está alguém que, ao cair da noite, sozinho com a cabeça no travesseiro, suspira diante da sensação de estar perdido em um mundo que exige demais e, paradoxalmente, tende a destruir quem segue essas exigências.
Contudo, há um “tempero contemporâneo” que não existia em 1950, na época em que foi lançado esse curta-metragem do Pateta: o celular. E falo mais especificamente do WhatsApp.
Se o carro, sozinho, já expõe muitas carências, com o celular/WhatsApp temos a certeza de termos ali ao volante uma pessoa incapaz de se desligar; incapaz de estar presente, inteira, naquele momento. Com os gatilhos mentais alimentados pelas redes sociais, a situação apenas piora. É nessa que, quando dirijo, preciso me embeber de paciência para lidar com uma horda de motoristas que são incapazes de largar o WhatsApp — mesmo que isso possa causar mortes e acidentes. Sim, as mídias fazem o alerta, as leis proíbem usar celular, mas há muita hipocrisia por trás de tudo isso. Nas novelas, por exemplo, os personagens falam ao celular enquanto dirigem. Nas fábricas, os carros já saem com espaço para suporte do celular e muitos já trazem as “centrais multimídia”, um nome de alta tecnologia para o mesmo nível de distração. Nas ruas, não há fiscalização suficiente.
Fica a pergunta: como combater os monstros se vivemos ignorando as monstruosidades que eles fazem diante dos nossos olhos?
Nasci em 1988, portanto, até metade da minha adolescência, eu vivi em um mundo analógico. Internet de banda larga, smartphones e esse “boom” de redes sociais, então, só vieram quando eu já estava adulto. É diante disso que eu não compreendo como pessoas da minha faixa etária, ou mais velhas do que eu, que praticamente passaram a vida inteira sem nada disso, deixaram-se cooptar pelo WhatsApp ao ponto de hoje viverem como zumbis, escravizadas a uma tela.
Claro que cada pessoa tem a liberdade individual de levar sua vida como melhor lhe convir. Contudo, quando as atitudes individuais interferem no coletivo, podendo inclusive causar um leque de danos, precisamos refletir sobre o que tem acontecido na sociedade. No caso do trânsito, aliar essa “zumbificação digital” com a condução de um veículo é a receita para o nível de violência que vemos nas ruas.
Na minha opinião, uma das formas de amenizar isso seria no momento do exame psicotécnico, com testes psicológicos, terapia em grupo, sessões com psicólogos, que de fato analisassem se aquela pessoa pode lidar com pressões. Porém, como você deve saber, se tem algo que passa longe de esmero na hora de tirar habilitação é a questão psicológica. As pessoas estudam as leis, treinam, entram em simuladores, fazem aulas, vão às consultas oftalmológicas, fazem o psicotécnico, e aí pegam o carro e viram o Pateta.
Quer conhecer alguém de verdade? Dê poder, dinheiro ou um carro.
Quantos adolescentes você já não viu que andam empolgados por aí? Se achando o máximo devido a uma caixa de metal sobre quatro rodas? Querendo aparecer quando estão com os amigos ou com a namorada no carro? Será que as autoridades ainda não perceberam que está faltando alguma coisa na hora da pessoa se candidatar a uma habilitação?
A quantidade de pessoas falecidas no trânsito brasileiro (cerca de 30 mil por ano, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada — Ipea) não é suficiente para ligar um sinal de alerta e perceber que apenas campanhas educativas não têm sido suficientes?
Eu até reconheço e admiro as ações como fazer blitz, panfletagem, ir às escolas, convidar os motoristas para assistir a vídeos educativos. Contudo, tenhamos sensatez, uma pessoa que passa a vida dirigindo feito um animal não mudará do dia para a noite só por um mero vídeo. São tantos aspectos sociais que impulsionam e alimentam a imprudência que fica difícil ansiar por mudança quando o meio social onde essa pessoa está inserida continua o mesmo, regendo as mesmas carências, enaltecendo barbaridades.
Percebe a complexidade disso tudo? Se considerarmos, então, que mudar a sociedade é uma tarefa hercúlea e a quantidade de mortes é um indicativo de que não podemos mais esperar por tanto tempo, essa urgência nos leva à necessidade de ter mais critérios na hora de habilitar novos motoristas. Contudo, temos aí um terceiro problema.
Se de fato tivéssemos testes psicológicos sérios, criteriosos, muitas pessoas (quiçá, a maioria) seria impedida de tirar habilitação. E aí seria um efeito dominó: menos pessoas habilitadas significa menos carros vendidos, queda na produção da indústria automobilística, menos impostos, menos arrecadação, e por aí vai. Em prol de um trânsito de fato melhor, a indústria estaria disposta a perder parte dos seus lucros? O governo investiria ostensivamente em transporte público de massa? Esse é o ponto.
Dirigir é uma atividade agradável, sabe? Muitas das vezes, eu gosto de escutar minha música e só rodar por São Luís, com calma, aproveitando a experiência. Porém, de uns 5 anos para cá, até fazer isso em um dia de domingo, ou nas primeiras horas da manhã, se tornou perigoso devido aos “apressadinhos” que parecem sempre em forte desespero. E isso foi me desestimulando, cansando, até amedrontando. Ultimamente, confesso, parte desse meu prazer ao dirigir foi corroído pelo que vejo nas ruas.
Costumo dizer que quem dirige seguindo as regras, consciente do que está fazendo, seguindo a sinalização, se preocupa dez vezes mais do que aqueles que andam como se estivessem em um rally. Portanto, já que sou do time dos que “pagam para não entrar em uma briga” e vivem se “fingindo de desentendidos”, percebo que estou cada vez mais propenso a deixar o carro de lado.
Não sei se a ascensão dos chamados veículos autônomos será concretizada com segurança (e democratizada), mas é fato que, somado à melhora dos serviços de transporte público, eu espero ansiosamente pelo dia em que eu não precise mais dirigir. Enquanto esse dia não chega, é melhor ouvir minha música, respirar fundo e ter mais atenção para lidar com a selvageria que assola as estradas, ruas e avenidas do Brasil.