Alguém se importa com a Baía de São Marcos?
Percepções, reflexões e angústias durante um passeio náutico pela Baía de São Marcos, em São Luís, Maranhão.
HÁ ALGO DE QUEBRADIÇO AO VER A CIDADE DE LONGE, FLUTUANDO NO HORIZONTE. De lá, distante dos problemas mundanos, ela olha para nós com a certeza de que sobreviverá a todas as imundices, palpáveis ou não, que jogamos sobre ela. A cidade não balança ao vento das mudanças. De longe, a cidade observa o catamarã com suas pessoas dançantes munidas de caixas com bebidas e petiscos; escuta a música que impede as conversas, vê olhos que veem telas que registram no digital o que deveria ser visto in loco; serena perante a alegria que balança na inconstância da maré. E acena a cada grito de empolgação na tentativa de que vejam, finalmente, a beleza de sua imensidão.
A cidade se mostra soturna na solidão de não ser vista.
Ah, pobre cidade velha, rica em tanta história, bela ao entardecer roxo-alaranjado que banha tua arquitetura. Ver teus casarões deste ângulo é um privilégio de poucos. E é triste observar que os privilegiados que te veem só te querem como pano de fundo para fotos em redes sociais. Algo me dói, São Luís, ao passarmos pelo teu Espigão da Ponta d’Areia, com apenas dez minutos de passeio, e já ter gente bebendo a tristeza de afogar suas vidas de merda num copo de álcool. Ao invés do encantamento com os pescadores que desafiam as ondas, ou com os filhos das palafitas que pelo menos ali podem ter uma piscina para eles, os privilegiados da cidade estão preocupadíssimos por parar o gerador que daria energia para os equipamentos de som.
— Sem música, não dá! — Define uma das organizadoras do passeio, logo apoiada pelos demais. E danam-se a beber.
Da parte de trás deste catamarã, São Luís, tentando me enturmar com tua beleza, percebo que temos algo em comum: somos invisíveis a quem se desespera pela visibilidade. Querem a música alta para calarem suas vozes internas, esquecerem de seus ricos empregos de bosta e dos problemas que pensam ter; querem álcool e música alta para esfregar na cara das pessoas que estão nas margens como se dissessem: “Sim, nós podemos pagar por um passeio desses! Inveje-nos, mortais!”
Foi-me prometido um passeio único e inesquecível; um olhar diferenciado para a bela cidade. Mas só vejo pessoas emburradas, reclamando de problemas, cheirando a álcool e a cigarro, sorrindo quando o celular está a postos para depois voltarem às suas carrancas. O que faço aqui, cidade? O que faço aqui?
Minhas mortes, cirurgias, história de vida; a tentativa de afogamento, a Experiência de Quase Morte, ficar acordado durante uma cirurgia, o bullying e o abuso que sofri, tudo me dá um olhar de empatia diante de ti, minha querida São Luís. Pois não fujo dos meus abismos, aprendi a não fugir. Ao invés de temer o silêncio, buscando por coisas que evitem minhas vozes internas, eu o abracei e abraço; conversamos todos os dias e choramos até encontrarmos risos na tristeza.
Vendo as águas passando, cidade, eu me vejo no passar da vida, uma gota d’água ínfima diante de tua imensidão de mais de quatro séculos.
É bonito e triste. E libertador.
Vejo crianças banhando nas águas de igual para igual com os nadadores profissionais que treinam ali. Outros enfrentam as ondas com caiaques, desafiando as pedras e a força da natureza. Um menininho acena, aceno de volta, conexão à distância sem necessidade de tecnologia. Tão cringe!, diria a garota debruçada na lateral do barco, quase caindo para tirar uma selfie que receberá curtidas vazias nas redes (anti)sociais.
Ao redor do catamarã, jet skis dos milionários de São Luís passam agitando as águas, deixando rastros da espuma do ego dos seus pilotos. Um deles faz questão de fazer manobras aéreas quando percebe que algumas pessoas tiram fotos. É ridículo, triste, vazio. E se torna ainda mais por ali ao lado estar um pescador em uma canoa pobre, pescando migalhas para suprir a pobreza dos desprivilegiados engolfados pela espuma da sujeira despejada por nós, privilegiados.
Seguro o fôlego de emoção quando passamos por baixo da Ponte do São Francisco. Desse ângulo eu me sinto apequenado, irrelevante, e gosto da sensação. Ver as águas do Rio Anil desafiarem a estrutura antes de se jogarem contra o oceano mais adiante é viciante, inspirador e perturbador, tudo ao mesmo tempo. De repente, parece que a natureza berra na tentativa de derrubar a ponte que liga a velha São Luís à nova cidade. Aqui dentro deste catamarã, as novas tecnologias dos smartphones desligam as pessoas da “velharia” ao redor.
Pelo visto, a realidade para elas perdeu a graça.
Adiante, rumo à Ponte Bandeira Tribuzzi, passamos por casas na beira do Rio Anil erguidas em três ou quatro andares para fugir da água quando a maré enche. Em uma delas, uma senhorinha em sua cadeira de balanço observa nossa passagem, talvez consciente da inutilidade da cidade ao jogar pérolas aos porcos que, cada vez mais trôpegos, ainda reclamam da falta de som.
Sim, minha bela cidade, o silêncio é perturbador para quem se recusa a mergulhar em si.
Há um silêncio nos manguezais das margens do rio, e também na garotinha que brinca com sua boneca na porta de sua casa-palafita; silêncio no céu com os pássaros indo para casa e nos peixinhos curiosos que vez ou outra pulam para fora do espelho d’água. E também dentro de mim em reverência à grandeza dos mistérios da natureza ao redor. Eis a lua vindo, minha querida, trazendo o azul-anil para manchar o roxo-alaranjado, imponente e altiva como só as grandes damas o são. Mas ninguém parece se importar, pois ainda reclamam da ausência do problema com a caixa de som…
“E não resta nada de notável / Sob a lua visitante”, disse a rainha Cleópatra diante da morte do seu amado Marco Antônio.
Pois é, querida cidade, nem mesmo a dignidade de tua beleza parece atrair a atenção dos bêbados de olhares vazios que agora, ao retornarmos, descem no píer ainda reclamando da ausência de música, como se nem mesmo tivessem saído em passeio. De fato, o marido de uma das organizadoras do passeio, tão bêbado que tropeça nas próprias pernas, ameaça brigar com o dono da empresa náutica. Por quê? Adivinha: devido à ausência da música.
Não, São Luís, nada de notável resta sob a lua; nada de aproveitável reside nos corações entristecidos dos desesperados.
Apresso minha mãe e a amiga dela para sairmos dali quanto antes. Chamo um UBER, voltamos para casa. Estou decepcionado. Não contigo, bela ilha, mas com as pessoas incapazes de empatia. Cada vez mais, sinto como se eu vivesse um simulacro do “Ensaio sobre a Cegueira” do grande José Saramago.
Apesar do ceratocone, eu enxergo demais, São Luís. E é devido a isso que estou tão cansado e calado; amedrontado diante de um mundo escravizado por telas, barulho, brutalidade e farsas.
Não chore, cidade, não chore. É inútil chorar por eles.
De fato, não adianta chorar por ninguém.
Estamos todos perdidos.