Amor importado da Mongólia (ou Urga, Badema)
O #MemóriasMusicais viaja mais de 16 mil quilômetros para mergulhar em uma das canções mais lindas e misteriosas da minha coleção.
ALGUNS SENTIMENTOS SÃO DIFÍCEIS DE SEREM EXPLICADOS. Por exemplo, como você explica o arrepio que um cheiro te causa? A emoção que pulula no peito diante de alguma cena? O fôlego preso de repente ao ver uma pessoa desconhecida? Sou alguém que tenta manter a racionalidade e não sucumbir às emoções. Uma constante entre quem me conhece é dizer que nunca me viram “descontrolado”, “aos berros”, “destemperado”. Muitos creem que isso vem de um interior pacífico. Ah, longe disso. Há furacões constantes dentro de mim, porém, faço esforços e peripécias para me afastar do caos causado por eles e manter a racionalidade. Bom, tem funcionado. Ao menos, em parte. Isso porque, quando se refere às músicas, as emoções falam mais alto e do nada, logo nos primeiros acordes de uma melodia, ao sussurrar de uma canção, ou nos primeiros batuques de um tambor, eu sinto um arrepio. Logo, minha audição capta um “algo a mais” que, racionalmente, não consigo explicar e meus olhos se enchem de lágrimas. E um detalhe: mesmo se eu não entender o que está sendo cantado ali.
Eu não posso dizer que sou noveleiro. Nunca fui muito de ficar sentado, quieto, olhando para a TV. De fato, minha mãe conta que, quando bebê, eu era quieto o suficiente para ficar sentado em frente ao aparelho televisivo, porém, só era assim se na minha frente tivesse alguma outra coisa para eu fazer — nem que fosse uma folha de papel e um pedaço de carvão para que eu ficasse rabiscando. Até hoje, três décadas depois, é muito improvável me ver parado diante da TV se eu não estiver com um caderno, ou um bloquinho de papel diante de mim. Por isso, são raras as novelas que lembro de terem me feito parar completamente para acompanhar capítulo a capítulo. Enquanto escrevo este texto, lembro de “A Viagem”, “A Próxima Vítima”, “Éramos Seis”, “Viver a Vida”, “O Cravo e a Rosa” e a recente “Mar do Sertão”.
Porém, há uma telenovela que se fundiu à minha memória não pela trama, como as outras que mencionei, mas devido à trilha sonora. Sequestrado pelo ouvido e levado para os enigmas sonoros do Marrocos e das regiões circunvizinhas, a novela “O Clone” é uma constante nas minhas listas de lembranças.
Eu poderia (e até deveria!) fazer um artigo da série #MemóriasMusicais sobre os álbuns “O Clone — Internacional” e o especial “O Clone: Danças do Ventre” de tanto que os escuto. Contudo, isso fica para o futuro. Hoje, eu te convido a mergulhar em minhas memórias sobre uma das músicas mais diferentes, enigmáticas e lindas que tenho na minha coleção de trilhas sonoras. Direto da Mongólia, entoada por Badema, atriz e cantora chinesa de etnia mongol, silenciemos os barulhos da alma para enaltecer “Urga”.
Se eu disser que lembro do “exato momento” em que “Urga” me assaltou, seria uma mentira sem tamanho. Tendo a crer que foi em alguma cena idílica, quiçá melancólica, da personagem Jade (interpretada pela atriz Giovanna Antonelli), protagonista da novela “O Clone”. O engraçado é que, quando uma canção me pega, eu fico fissurado nela até descobrir o nome da música, quem canta e qual mensagem ela traz para mim. Neste caso, algo que lembro foi do desafio de saber que música misteriosa era aquela. Ali, por meados de 2002, eu com 14 anos nas costas, internet arcaica, inexistência de banda larga, descobrir o nome de uma música era uma tarefa complicada. Desvendar o título de uma canção mongol, então, que só tocava uns 30 segundos em cenas esparsadas, era uma jornada épica, algo que beirava o impossível. Por isso, tenho a lembrança de economizar minha mesada para comprar aqueles que seriam os dois primeiros CDs que tive na vida: o álbum “Stars — The Best of The cranberries 1992–2002” e, é óbvio, “O Clone Internacional”.
Olha, vou te dizer: esse CD se pagou, viu? Não consigo precisar volumes de audições, mas, certamente, foram suficientes para quase arranhar esse CD — e deixar quase destruído o livreto interno, aquele que trazia as letras das músicas. Para você ter ideia, eu era tão apaixonado por esse CD que, mesmo sem ter onde escutar e já com a versão digital, eu o mantive aqui em casa há até poucos anos, quase como um tesouro; uma relíquia.
Agora há pouco, mencionei que o CD tinha um livreto com as letras das músicas. Sim, havia a letra das músicas em inglês, daquelas em árabe, as canções em espanhol, italiano e francês. Tudo lindo para facilitar a vida? Não se você tivesse se apaixonado logo pela representação da Mongólia, cuja letra, é claro, era inexistente no tal livreto. Relembrando que estávamos ali no início da explosão da internet (principalmente aqui no Brasil), eu passei anos e anos imerso na melodia, sem fazer ideia sobre o que aquela voz suave cantava, mas apoiado no arrepio que sentia (e ainda sinto) ao escutá-la, certo de que “Urga” não seria uma decepção quando eu descobrisse seu significado.
Adianto logo: não foi uma decepção.
Não lembro quais caminhos percorri para desvendar os segredos de “Urga”. Hoje em dia, você encontra a tradução facilmente, apesar de, a depender do idioma, feita de modo desleixado e literal. Anos atrás, porém, foi um desafio. Só sei que rodei, rodei, rodei e nessa busca esbarrei em um filme mongol/russo raríssimo, lançado em 1991. Em inglês, ele tem o título de “Close to Eden”, em português “Uma Paixão do Fim do Mundo” e no idioma original o nome do filme é… “Urga”! E o melhor: com trilha sonora composta pelo russo Eduard Artemiev com participação de quem? Badema.
BINGO!
Lembro de ter ficado tão, mas tão fascinado por essa descoberta inusitada que embarquei em um segundo desafio: dar um jeito de assistir a esse filme. Para resumir a história, eu consegui o filme, sim, porém, só encontrei legendas em russo. Usei o bom e velho Google Tradutor para obter alguma coisa minimamente compreensível em inglês, assisti ao filme assim mesmo para entender o contexto, e parti para, eu mesmo, fazer as legendas em português. E fiz. Tenho orgulho de dizer que sou, sem dúvida, uma das poucas pessoas no Brasil a ter as legendas corretas, localizadas, para esse filme. E tudo isso, veja só, devido à minha “paixão à primeira audição” por uma música em uma telenovela.
Mas, afinal, qual a mensagem de “Urga”?
Composta como música-tema do filme homônimo, “Urga” é basicamente uma canção de amor, mas passa longe de ser uma canção romântica — pelo menos, aos meus ouvidos. Badema poetiza o louvor de uma esposa pelo seu marido, traduzindo em versos melancólicos que o amor deve ser encarado como as areias do deserto: fluído, mutável, adaptável; grandioso, belo, assustador em sua imensidão, porém, tranquilo no silêncio cantado pelos ventos que moldam as dunas do tempo. “Urga” é sobre encarar as paixões com a serenidade de um pássaro que sobrevoa o areal sem se importar com a distância que falta para superar essa jornada, degustando de cada momento de beleza que a natureza entrega para ele. É uma canção sobre como a vida ganha outros sabores quando nos entregamos ao amor, mesmo que ele esteja distante.
“Mesmo que [a vida] seja mais temperada
Não consigo mais degustá-la
Mesmo que seja revestida de ouro
Não se adere mais ao meu corpo
Oh, meu amado, meu querido
Você teve que partir para longe
E ainda não retornou
Oh, meu querido, meu amor
Que foi para longe de mim
E ainda não voltou.”
A Mongólia é um dos países com a menor densidade demográfica do planeta. Essa característica se mescla ao fato de ser um lugar com grande extensão territorial, cheio de gigantescas áreas desabitadas, algo que traz uma sensação de melancolia e de introspecção; solidão e desolação. No filme, essa beleza opressiva, misteriosa, em certos momentos depressiva, é quase uma co-protagonista, um personagem dinâmico que impulsiona a narrativa. Diante dessas características, a segunda parte da música faz essa comunhão entre a grandiosidade da Mongólia e como as paisagens desoladoras do país podem tanto emoldurar as paixões ali semeadas, como também influir na destruição desses amores.
“Onde há belas colinas
Também haverá sombras
Onde o meu amado estiver
Lá estará minh’alma e meu coração
Oh, meu amado, meu querido
Você partiu para longe
E demora a voltar
Parece que não retornará
Parece que não retornará
Lá nas montanhas
Perdido na escuridão
Onde você estiver
Estará minha alma e meu coração
Meu coração…”
Retomo a pergunta que inicia este artigo: como explicar o amor por uma música mongol que passei anos sem compreender? Como explicar meu arrepio enquanto escrevo este texto, meus olhos cheios, sorriso besta nos lábios? Como traduzir em palavras a paz e a serenidade que “Urga” me traz?
Por mais óbvio, clichê e piegas que soe, eu só posso apontar uma resposta: amor. “Urga” me toca porque me transporta para um lugar de silêncio e de finitude na infinitude da existência. Diante desse infinito, antes de escutar e entender, precisamos escutar e sentir, deixar a racionalidade um pouco de lado, deixar-se levar.
Para mim, “Urga” é esse voo rumo ao imponderável.
Música: “Urga”, Badema (Eduard Artemiev / Badema / Steve Hillage / Miquette Giraudy)
Álbum: O Clone — Internacional, 2002
Mesmo que [a vida] seja mais temperada
Não consigo mais degustá-la
Mesmo que seja revestida de ouro
Não se adere mais ao meu corpo
Oh, meu amado, meu querido
Você teve que partir para longe
E ainda não retornou
Oh, meu querido, meu amor
Que foi para longe de mim
E ainda não voltou.
Lá, onde há belas colinas
Também haverá sombras
Onde o meu amado estiver
Lá estará minh’alma e meu coração
Oh, meu amado, meu querido
Você partiu para longe
E demora a voltar
Parece que não retornará
Parece que não retornará
Lá nas montanhas
Perdido na escuridão
Onde você estiver
Estará minha alma e meu coração
Meu coração…
E deixo também esta versão ao vivo, cantada por Adilet Jumabekov, no The Voice Rússia.