As pedradas quando você decide desabafar

O modo como algumas pessoas tendem a jogar pedras em você diz muito sobre uma sociedade cada vez mais incapaz de escutar.

Henggo
3 min readOct 1, 2024
Arquivo pessoal.

UMA DAS EXPERIÊNCIAS MAIS CURIOSAS QUE TIVE NAS REDES SOCIAIS FOI QUANDO AINDA TINHA INSTAGRAM. Fiz um vídeo, praticamente um desabafo, contando sobre as cicatrizes que tenho no corpo devido às várias cirurgias que fiz ao longo da vida e as consequências disso no meu dia a dia. E como resposta, obtive dezenas de mensagens questionando a veracidade do relato, perguntando qual era a necessidade de contar algo tão forte e se eu “só queria chamar atenção”. O mais interessante é que nessa época eu fazia muitos vídeos de atuação, recitando poesias, algumas até baseadas nessas dores, mas com versos mais abstratos, metafóricos. E era tudo bem. Quando decidi falar diretamente, letra por letra, sem firulas, ganhei uma chuva de pedradas.

Coisas semelhantes já aconteceram fora das redes sociais. Certa vez, em um jantar com uma amiga, passei pela situação de contar sobre a época de escola, como o bullying que sofri ainda repercutia atualmente, e ela virou para mim e disse:

— Ai, amigo, mas todo mundo passou por isso. Esquece — e voltou a falar da vida dela.

Eu me calei, o jantar seguiu, engoli minhas angústias.

Em muitos momentos, com familiares, tentei e tento falar sobre o que aconteceu, conversar sobre coisas que vivenciei, dores que sinto, fardos, e não raro recebo olhares de enfado, ou o encerramento da conversa com frases edificantes como “reza que passa” e “todo mundo passa por isso, não é só tu”.

Isso cansa. Sério.

Cansa ainda mais quando penso que no colégio meu apelido era “diário” porque eu escutava todo mundo. Às vezes, estava lá, quieto, quando alguém chegava e começava a vomitar coisas sobre mim. Tanto é que muitas pessoas tinham certeza de que eu iria fazer Psicologia como curso na universidade. E pensando aqui, enquanto escrevo este texto, tenho a impressão de que minha decisão de passar longe da Psicologia tem muito a ver com uma tentativa de fugir disso.

Bom, vou te dar um spoiler: eu não consegui.

Alguns amigos meus costumam dizer que sou um “psicólogo sem diploma”, outros me chamam de “divã ambulante”. Às vezes, eu me sinto usado, confesso. Percebo como as pessoas estão muito dispostas a falar, mas nem um pouco propensas a escutar. E quando levo essa experiência pessoal para o mundo das redes sociais, isso me parece ainda mais evidente.

Parece que ler um relato de dor sem meias-palavras, algo que foge do usual de dancinhas, risos, ou o choro alarmado e exagerado, deixa parte das pessoas incomodadas. É como se mergulhar em algo assim fizesse com que a pessoa fosse obrigada a reconhecer que a maioria do que vê não passa de uma ilusão, um mascaramento. E quando ela vê um desabafo de realidade, com dores, abusos, traumas, a tendência é querer se afastar disso, mesmo que o texto traga um relato de superação. E é aí que vêm as pedradas.

Simbolicamente, tendo a pensar que é algo como “deem-me o espetáculo, mas não a dureza da realidade”.

Pior ainda, como as redes sociais dão a falsa sensação de anonimato, eu recebia muitos xingamentos, muitos questionamentos, muitas acusações. São palavras que tentavam, literalmente, desqualificar a vítima. Um deles, inesquecível, chegou a me dizer que era um absurdo eu falar do bullying que sofri porque “fica parecendo que é tudo verdade e isso pode assustar o pessoal” (sic).

As pessoas não querem a verdade. Pelo menos, não a verdade verdadeira. Talvez, se eu fizesse um vídeo-espetáculo, com um título-gatilho do tipo “Sofri bullying e quase morri”, cheio de emojis chorosos, com uma trilha sonora de melodrama mexicano, fosse diferente. Mas não. Faço um texto. E o “problema” disso, entre milhões de aspas, é que quando você lê, a imersão te obriga a moldar aquelas cenas na mente, a atenção fica direcionada às palavras, e tudo se torna mais íntimo, mais cru. Eu não sou apenas “o cara do vídeo”, mas estou na mente da pessoa. Isso afasta parte do público.

No filme Questão de Honra, de 1992, o Coronel Nathan (Jack Nicholson) em certo momento vira para o Tenente Daniel (Tom Cruise) e berra uma frase que se tornou um clássico. É exatamente essa frase que me vem à mente quando penso em tudo isso:

Você não aguenta a verdade!

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Written by Henggo

Escritor, Revisor & Ghostwriter. Coleciona trilhas sonoras e nome estranhos de pessoas enquanto espera a chegada dos ETs. Saiba mais em linktr.ee/Henggo

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