Até quando, mulher? (#ArteEmContos)

Henggo
4 min readMar 3, 2021

--

#praTodosVerem | Descrição da imagem: ao fundo, veem-se escamas azuis e laranjas em formas geométricas triangulares. À frente de tudo, há um triângulo vermelho com manchas em vinho que se destaca como se fosse uma pétala.

ACORDOU DE SUPETÃO E TOMOU FÔLEGO. Olhou para o lado e sentiu o alívio formigar pela pele: o marido não estava ali. Fechou os olhos por alguns segundos. As costelas ainda doíam, mas os lábios, já acostumados a tanta pancada, nem inchavam mais após as surras. Levantou-se e parou de frente para o guarda-roupa. A mala no alto do móvel parecia questionar quando seria a hora de acabar com aquilo.

“Até quando?

Afastou o pensamento. Mirou-se no espelho, a violência no olho já quase invisível. Aquela senhora de quase setenta anos havia lhe sussurrado a mesma pergunta.

Até quando, Bernadete?

Engoliu a resposta, deixou a mala para outra oportunidade. Arrumou o cabelo de qualquer jeito. Suspirou. Teria que pintá-lo logo, pois o marido odiava “viver com uma velha”. Saiu do quarto com montanhas de roupas para passar. Haroldo se recusava a pagar empregados. Era função dela cuidar da casa. Nascera para isso, ele dizia.

Uma hora depois, estava entretida em um suadouro diante da tábua de passar quando os dedos afundaram pelo forro de um dos ternos e roçaram em um papel. Bernadete não precisou retirá-lo do esconderijo para saber do que se tratava.

Engoliu em seco.

Em cinquenta anos de casamento, ela nunca tivera filhos. Por sua vez, Haroldo tinha sete — ou onze, se contasse com os quatro que ele “ajudara” a esposa a perder.

Até quando, mulher?

Terminou de passar as roupas, levou-as para o quarto, organizou o montante. Olhou para a mala. A maldita mala! Estava cheia de quê? Humilhação? Pancadas? Sangue? Esperanças?

Vontade. Tá cheia de vontade.”, concluiu.

Pegou-a num movimento quase automático. Abriu a mala, as mãos tremiam. Quantas vezes aquela cena se repetiu? Dez, vinte, quarenta? Jogou as roupas de qualquer jeito lá dentro, os dois pares de sapatos sobreviventes do ciúmes do marido e fechou o zíper com o coração nas mãos.

Nunca chegara àquela fase do jogo.

Sentiu-se orgulhosa.

Puxou a mala pelos corredores da casa e parou na cozinha. Olhou cada canto, abriu as gavetas, mexeu nos talheres. Passara a maior parte da vida ali, engordurada, temperando com lágrimas a comida do marido.

Até quando?

Virou-se para sair de casa quando estancou na porta.

— Tu vais pra onde, Bernadete? Ficou doida de vez? — antes que ela pudesse responder, Haroldo alcançou a mulher em dois passos. — Tá surda agora, é? Responde, porra! Pra que essa mala?

As palavras pareciam um bolo azedo na garganta. Saíram em um rasgo, mas saíram

— T-T-Tô indo… embo-bora.

Haroldo balançou o cabeça por alguns segundos, a mãos estrangulando o braço da esposa. Os dois se encararam. Ela em um esforço para não transparecer medo, ele em um esforço para não se descontrolar ali, no terraço, sob o olhar dos vizinhos.

— Tá certo, Bernadete… tá certo. E tu vais fazer o que da vida, hein? Me fala. Tu nunca trabalhou, não sabe fazer nada…

— N-Nada? Eu s-sei cozinhar, sei passar, sei…

Velha assim? Ah, faça-me o favor, mulher! Uma velha dessas que não se dá respeito, onde já se viu? Acorda, Bernadete! Tu não serve mais nem pra ser puta — arrancou a mala das mãos da esposa e encaminhou-se para dentro de casa. — Tem que dar é graças a Deus que eu ainda te aturo; que ainda tenho pena. Tu seria o que sem mim? Nada!

Bernadete entrou em casa, cabeça baixa.

Haroldo tirou o blazer e jogou pelo chão, afrouxou a gravata, afrouxou o cinto. Abriu a mala e começou a tirar as roupas da esposa. Puxou um vestido e rasgou. O som do tecido em frangalhos pareceu encher a sala e esbofetear Bernadete.

— Tu és minha, velha burra! Acorda! Eu é que pago tuas contas, tá lembrada? Isso tudo aqui ó, é meu! — outro vestido rasgado. — Tu ias sair o quê? Com essas coisas? Pois não vai mesmo! Isso tudo é meu. Meu dinheiro, meu esforço, meu suor, meu…

Haroldo estancou, os olhos arregalados.

Bernadete tinha uma faca nas mãos apontada para ele.

Para a surpresa dele e até mesmo dela, aquelas mãos calejadas não tremiam.

— Bernadete… — ela levou a faca ao pescoço, olhar fixo nos olhos do homem. — Bernadete…

E então, a lâmina cortou de cima a baixo, da direita para a esquerda. Sem dó. Sem dúvida. Sem receio.

Bernadete sorriu.

Ao terminar de estraçalhar vestidos, sutiãs e mais toda sorte de roupas, juntou os pedaços de pano e jogou no rosto do marido.

— Teu dinheiro, Haroldo — bateu no peito. — Meu corpo.

— Tu não vai… — a frase não foi terminada. A faca voou das mãos de Bernadete e passou a centímetros do rosto de Haroldo.

Perplexo, o homem despencou no chão, sem acreditar naquele rompante.

A mulher saiu de casa e sentiu o calor do meio-dia no corpo desnudo.

Balançou os cabelos grisalhos, passou as mãos pelo corpo enrugado, caminhou rua acima.

Bernadete sorriu.

Ela tinha a si mesma.

Isso já bastava.

--

--

Henggo
Henggo

Written by Henggo

Escritor, Revisor & Ghostwriter. Coleciona trilhas sonoras e nome estranhos de pessoas enquanto espera a chegada dos ETs. Saiba mais em linktr.ee/Henggo

No responses yet