O MAPA ABERTO NO COLO, OLHARES DIANTE DAS POSSIBILIDADES, MENTES COM CÁLCULOS A TODO O VAPOR, O CASAL DE RAPAZES ESCOLHIA O PRÓXIMO DESTINO. Do Japão à Índia, do Marrocos à Rússia, da África do Sul à Portugal, conheciam bastante coisa. Sim, enfrentaram preconceito em muitos lugares, seja por serem um casal gay, seja por serem negros, seja por serem muçulmanos, mas sempre conseguiram engolir as ofensas e seguir adiante.
Contudo, uma hora cansa. Cansa muito.
Por isso, dessa vez queriam um país que fosse mais liberto dessas coisas, um país que parecesse mais alegre, mais cosmopolita, mais sorridente; um país onde as pessoas não se importassem com sexualidade, religião ou raça.
Esse lugar existe?, perguntavam-se.
Os olhares se cruzaram, o sorriso brotou e Amin apontou para a América do Sul e aquela extensa porção de terra chamada Brasil. Salim se empolgou e logo tomou notas e ligou para a agência de viagens.
Não haveria lugar melhor.
Lembrou-se das pessoas quase nuas nas festas de carnaval, das imagens mostradas pela televisão de pessoas aos beijos no meio da rua; lembrou-se das praias com corpos à mostra, do clima sensual e dos clipes de músicas sexys. Lera em algum lugar sobre o Brasil ser diversificado e acolher a todos com um sorriso no rosto. A propaganda do governo brasileiro mostrava a natureza, os abraços e as oportunidades oferecidas pelo país. Com um pouco de português que aprendera quando morara na Angola, lembrou-se da variedade musical e de como o país parecia aceitar sem problemas uma garota de 15 anos cantando sobre “quicar e sentar”. As famosas novelas até tinham negros! E os brasileiros celebravam os povos antigos e pareciam enaltecer as mulheres, pois muitas delas eram aclamadas nos jornais.
Sim, o Brasil parecia ser bem liberal. Um país que aceitava todas as cores.
Salim sorriu ao desligar o telefone. Do nada, veio-lhe a ideia: quando estivessem no Brasil, pediria Amin em casamento.
Seria um símbolo de libertação.
SAÍRAM NO SAGUÃO DO AEROPORTO DE MÃOS DADAS SEM PERCEBEREM OS OLHARES DE ESGUELHA. Salim ouviu a palavra “viados”, mas, sem saber o significado, pensou ser um elogio. Empolgados, não notaram quando uma mulher afastou os filhos de perto deles e falou algo sobre “aquilo ser errado”. Uma garota passou por eles com uma mini saia e Amin ficou satisfeito por terem escolhido um país que não se importava com aquilo. Só não viram quando um grupo de homens se aproximou da menina com olhares sedentos enquanto algumas pessoas a chamavam de “puta” e de “depravada”. Por coincidência, na saída do aeroporto havia um grupo de carnaval com mulheres dançando só de biquini e tapa-sexo.
Já na área dos táxis, pensaram que o motivo dos taxistas os recusarem a levá-los era por todos os carros já estarem reservados. Esperaram um pouco e, sem conseguirem um táxi, chamaram um carro compartilhado. Estranharam o olhar de hostilidade quando o rapaz chegou para buscá-los, mas não comentaram nada.
Durante o percurso, o motorista conversava com outro passageiro sobre o “absurdo da juventude de hoje gostar de uma travesti cantora chamada Pablo Vittar. É o cúmulo da sexualização”, ele disse. No som do carro, porém, tocava uma música falando sobre “pegar novinhas” e logo em seguida a tal “quicar e sentar” ensinada pela cantora de 15 anos.
Os dois homens cantavam ambas a plenos pulmões.
Chegaram ao hotel, foram tratados bem e encaminhados para o quarto. Tomaram um banho, pediram o almoço. Durante a refeição, o jornal local mostrava as festas de rua e um bloco só de homens vestidos de mulher. Amin e Salim sorriram, encantados.
“Que país à frente do seu tempo!”
Ligaram para a recepção e pediram informações sobre algum bloco. Queriam ter essa vivência. Minutos depois, informação em mãos, arrumaram-se e foram para a rua. Na esquina, foram abordados por um grupo de policiais que os revistou e fizeram várias perguntas, a principal delas se eram de alguma favela. Salim e Amin não entenderam o porquê. Pensaram ser por mera segurança, mas um grupo de turistas brancos e loiros passou pelo mesmo local e os policiais ignoraram.
Recuperaram-se do susto e caminharam para o bloco. Sentiram-se confortáveis ao verem um grupo de garotos musculosos maquiados e usando perucas e vestidos sensuais. Tão animado com tal liberação, Salim tirou a aliança do bolso, ajoelhou-se e pediu a mão de Amin em casamento. O outro, emocionado, jogou-se nos braços do parceiro e beijou-lhe ali mesmo.
Os rapazes vestidos de mulher olharam para o casal e aproximaram-se.
Salim e Amin prenderam a respiração. Não tinham mais como negar: sim, havia algo de errado naquele país.
Deram-se as mãos. Rezaram.
E nada aconteceu.
Os rapazes aplaudiram, pularam ao redor deles; dançaram e abraçaram os dois, parabenizando-os. A namorada de um deles sacou uma câmera e tirou milhões de fotos. Eram só sorrisos.
Quando o grupo se afastou, Amin e Salim entreolharam-se, perplexos.
Apesar de tudo, estavam no país certo.
Ainda havia esperança.
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A obra Brasil de Todas as Cores pode ser vista junto à outras telas, escritos e ilustrações em https://linktr.ee/Henggo