Lançada em 2006, a plataforma Wattpad é um aplicativo de compartilhamento de histórias de forma independente. O mecanismo permitiu que milhares de autores enfrentassem o medo da exposição, a burocracia das editoras e a dificuldade de encontrar leitores e alcançassem a visibilidade daqueles textos guardados em gavetas. Oito anos depois do lançamento, este que vos escreve foi apresentado à logo laranja e, tal qual tantos outros escritores, viu a vida se transformar.
Em meados de 2014, recém-graduado no curso de Jornalismo, eu trabalhava com Assessoria de Comunicação. A área era interessante, permitiu que eu conhecesse muitas pessoas e desenvolvesse a minha escrita tanto quanto durante a época de repórter nas redações de jornais. Contudo, eu sentia falta de um “algo a mais”. Eu vivia angustiado diante do ciclo de escrever “textos para os outros” e ter pouco tempo para me expressar do modo como pretendia.
Entenda: desde pequeno eu sou um curioso da vida; um voyeur da humanidade. Sim, é sério. Muitas de minhas lembranças da infância são de estar em silêncio e observação enquanto a vida acontecia ao meu redor. Taxado de tímido e antissocial (ao ponto de amigos da minha mãe aconselharem psicólogos), hoje eu percebo que essa era e é a minha natureza. A prova disso é que, naquela época, eu tinha o hábito de desenhar situações do meu dia-a-dia antes de ir dormir. Já ali, eu buscava uma forma de compreender o mundo; uma forma de expressar sensações. Quando a adolescência chegou, os desenhos ganharam a companhia de alguns rascunhos de histórias e é nesse ponto que entra o Wattpad.
Eu sempre escrevi, mas nunca me imaginei como escritor. Para dizer a verdade, quando a fatídica frase “O que você vai ser quando crescer?” foi apresentada para mim, cursos como “Letras” ou “Cinema” passaram longe dos meus anseios. Para resumir a história, eu fui cursar Direito. Foi um horror.
“Burocracia é a arte de tornar o possível impossível” Javier Pascual Salcedo (contemporâneo), Argentina, escritor.
Burocracia, formalidades, mesquinharias, arrogância, termos técnicos, “Senhor isso”, “Doutor aquilo”, “data venia”… Que tipo de coisa era aquela? Fiquei no curso por quase um ano e meio até decidir fazer o vestibular de novo. Dessa vez, porém, ao invés de atender às expectativas da família, olhei para os meus dons e, dentre as opções, escolhi o Jornalismo. Agora, um acerto.
Os professores me ensinaram a buscar coesão e coerência, a ter esmero e amor pelo texto, a apurar as informações, a sempre reescrever, editar e revisar. O Jornalismo me ensinou a afagar cada linha; a costurar frase a frase, parágrafo a parágrafo. Acima de tudo, o curso de Jornalismo me ensinou a arte de lapidar uma lauda para extrair o cerne de uma questão. Sim, é apaixonante. Mas, infelizmente, após a formatura eu ainda sentia falta desse “algo a mais”, sentimento que se intensificou em 2014. E foi nesse curva da estrada da vida que minha afilhada me apresentou o Wattpad.
A princípio, eu estranhei. Eu vi a plataforma como “algo menor”, um lugar onde “autores amadores publicam textos sem compromisso”. Sim, eu pensei isso. Puro preconceito. Mas, à medida em que eu mergulhava nos livros, eu mordia minha língua mais e mais. Ainda bem! Após um ano no anonimato, em dezembro de 2015 eu “sai do armário”, criei o pseudônimo “Henggo” e comecei a publicar meus textos engavetados. Apenas uma palavra pode definir esse processo: transformador.
Eu comecei a interagir com outros escritores, a receber o feedback dos leitores, a engolir meus preconceitos e a respeitar o trabalho de centenas de pessoas. Eu me aventurei em mundos tão ricos quanto qualquer fantasia importada, em romances dignos de qualquer prateleira, em emoções que em nada deviam às clássicas cenas de filmes; eu vi autoras ganharem prêmios físicos, vi aspectos sociais serem desenvolvidos em textos, vi uma diversidade de pensamentos e de liberdade de pensar que nenhuma editora seria capaz de publicar por medo “do mercado tradicional”. Eu vi libertação. Contudo, há algo maior: estar no Wattpad me ensinou a estender a mão.
“Existir é coexistir” Gabriel Marcel (1889–1973), França, escritor.
Devido a plataforma, eu passei a exercer o que aprendi no Jornalismo (e, posteriormente, no curso de Artes Visuais) de outra maneira. Eu comecei a ajudar autores e autoras que gostavam dos meus comentários e vinham pedir algum conselho. De repente, palavras e termos como “revisor”, “copidesque”, “ghost writer”, “leitor beta”, “resenhista”, “leitor crítico”, foram agregadas ao meu vocabulário. Eu descobri novas nuances da minha profissão.
Não, o Wattpad não é perfeito. Há certas falhas (bugs) no aplicativo e no site, problemas inerentes a qualquer rede social (brigas, polêmicas, plágio) e, é preciso reconhecer, alguns autores que insistem o usar o rótulo de “livros independentes” como salvo conduto para escreverem de qualquer jeito ou abandonarem as histórias pela metade. Mesmo assim, vale a pena.
O conhecimento, a integração, a diversidade, a responsabilidade com cada leitor, a energia gerada a cada comentário; os grupos de discussão, os debates, as amizades, o aprendizado, a minha evolução e a dos meus colegas escritores, a vontade de fazer dar certo, a celebração da vitória alheia, tudo isso agrega valor à plataforma. Ao final do dia, após publicar algum capítulo ou apenas ler um dos livros da minha biblioteca virtual, eu deito a cabeça no travesseiro embalado por um único pensamento: “O Wattpad mudou a minha vida. Ainda bem!”.
“Uma vida é uma obra de arte. Não há poema mais belo do que viver em plenitude.” George Clemenceau (1841–1929), França, estadista na época da Primeira Guerra.