Deus não vai te ajudar a escrever
A busca desesperada por “inspiração” é um dos maiores erros que um escritor pode cometer
NESTE ANO DE 2024, EU DECIDI MERGULHAR NO REDDIT, PLATAFORMA DE FÓRUNS DE DISCUSSÃO. É um movimento interessante porque, pelo menos ao meu ver, ao invés de ficar estático vendo vídeos de pessoas vomitando suas opiniões, eu posso exercer algo que me fortalece: a escrita. Estou em algumas páginas de escritores e logo percebi que um tema recorrente nesses fóruns literários é a boa e velha inspiração. Questões como bloqueios criativos, como se inspirar, de onde vêm as ideias, são recorrentes nessas discussões como se escrever fosse um ato de apenas sentar em frente ao computador (ou a um caderno, para os puristas) e aguardar pelo surgimento da aclamada musa intelectual, a inspiração.
Não vai acontecer.
A escrita é um ato ativo, não passivo — sem conotações sexuais, por favor. A pessoa tem que fazer um esforço em prol desse ofício, esforço esse que pode ser traduzido em estudar escrita criativa, ler bons livros, mergulhar no meio social, perceber o entorno, se colocar à disposição dos incômodos que a vida em sociedade pressupõe. Porém, algo que percebo é como parte das pessoas que perseguem a inspiração como Zeus perseguindo a ninfa Leto esquecem de um ponto: Zeus não estava com um celular nas mãos para ficar desconectado do mundo.
Ok, ok, não quero entrar em questões geracionais, ou sobre o meu tema favorito da vida, que é como as redes sociais não têm nada de sociáveis. Vou ficar quieto. Mesmo assim, é notável como muitas pessoas estão (literalmente) com informações sobre todo o mundo na palma das mãos, mas vivem de tal modo mergulhadas em bolhas de redes sociais que esquecem que a vida está acontecendo lá fora. Basta erguer a cabeça.
É claro que alguém pode perguntar:
— Ué, mas se a pessoa já está “com o mundo na palma das mãos”, porque ele deveria “olhar para fora”? Não basta procurar por informações na internet?
Sim, esse seria o ideal. Contudo, eu noto como a maioria das pessoas não fazem isso. Muitas pegam o celular e os dedinhos já vão para o ícone do WhatsApp, ou do Instagram, TikTok, Facebook, ou (ponha aqui o seu vício preferido). De fato, há uma parcela da sociedade que tem as redes sociais como sinônimo de internet. Junte isso ao fato de que muitas operadoras de telefonia oferecem pacotes onde algumas dessas redes sociais são gratuitas e você começa a reforçar essa visão deturpada das coisas.
Como nós, escritores e escritoras, estamos inseridos no contexto social, o mergulho desmedido nessas redes tem feito com que a inspiração pareça algo impossível, distante, nebuloso, que apenas os outros podem alcançar enquanto dançam na frente da câmera.
Se a pessoa vive feito um robozinho dando scroll na tela, deslizando, distribuindo curtidas, na maioria das vezes sem dar mais do que 3 segundos de atenção para o que está a frente dela, como isso vai gerar inspiração em alguém?
Somado a isso, apesar de estarmos em 2024, muitos ainda cultivam uma noção deturpada do que é o ofício da escrita. Eu conheço pessoas que já me disseram, cara a cara, que não viam o meu esforço de escrever como um trabalho por eu “só espero a ideia surgir e aí escrevo”. É a imagem torta do escritor que fica sentado em um campo de margaridas, respirando o ar puro, sorvendo o esplendor da vida, até que as nuvens se abrem, anjos cantam, um raio desce sobre a minha cabeça careca que se ilumina mais que um farol e… Uau! Inspiração!
Não, amigo e amiga, não é assim que funciona.
Se há algo que agradeço muito foram meus anos como repórter. No momento em que você chega à redação às 7 da manhã, recebe as pautas e sai para fazer as reportagens, você não tem tempo para ficar deitado em berço esplêndido à espera de inspiração. Imagine eu chegar no final do dia, virar para a minha chefe e dizer:
— Então, sabe, tia, eu não fiz a reportagem porque não tive inspiração…
Foda-se. Demitido. Simples assim. Bem-vindo, bem-vinda, à realidade. Vou atrás de alguém que não precise de inspiração para escrever.
Perceba: existe inspiração? Sim, existe. É óbvio que sim. De vez em quando eu tenho insights, relampejares de ideias que surgem do nada. Mas note uma coisa: essas ideias só “surgem do nada” porque eu estou com a mente aberta para perceber o mundo ao meu redor. Como? Observando, absorvendo, escutando, silenciando; sentado na praça de alimentação de um shopping olhando as pessoas, vendo os trejeitos, pescando olhares, conversas, brigas, discussões; assistindo aos jornais, lendo para além do que me é jogado pelas emissoras de televisão, andando pelas ruas de São Luís, me obrigando a sair da minha bolha de classe média alta, conversando com pessoas diversas. De certo modo, eu treinei a minha mente para captar detalhes, como demonstrei nos ensaios Imagens que ninguém vê e A tristeza na exposição de Van Gogh.
Algo que aprendi é que a inspiração deve vir em formato de ideias e não em forma de texto. Percebe a diferença?
Quando a pessoa é do time do “esperar por inspiração”, a mente dela quer que ocorra uma espécie de explosão textual: ela está andando na rua, vem a inspiração e junto dela o livro todo pronto, com personagens, tramas, curvas de evolução, personalidade… Em resumo, essa pessoa não quer o trabalho, o esforço que é inerente ao nosso ofício (e que muitas pessoas rejeitam). Por outro lado, quando a inspiração vem apenas em forma de ideia, essa pessoa faz o movimento contrário: ao invés de escrever numa ânsia como se a ideia fosse fugir à qualquer momento, eu vou esmiuçar essa ideia, vou estressar essa ideia ao máximo, em forma de roteiro.
Se você que está lendo isso tem pretensões de escrita, coloque uma coisa em sua cabeça: roteiros preservam tuas ideias. São antipáticos, são cansativos, você às vezes quer mandar todos para a puta que pariu e quebrar o computador, mas os roteiros são a garantia de que aquela ideia terá um desenvolvimento sólido, pujante, forte, e verá um fim.
E aqui vem o ponto de que você precisa estudar.
o estudo te dá base para enfrentar o mundo
Eu só estou atento a tudo isso e sou capaz de transformar minhas ideias em roteiros porque eu estudei e estudo escrita criativa. E aqui nesse ponto é estudar roteiros. Você precisa testar vários deles para ver o que se encaixa na tua vida. E um detalhe: você precisa desse estudo sobre roteirização para que possa entender o que te deixa confortável e criar o teu próprio método de fazer roteiro.
Vou dar um exemplo prático. Lá atrás, meados de 2010, quando decidi que era isso mesmo que eu queria da vida, eu comecei pela conhecida Jornada do Herói. Só que não funcionou comigo. O que eu fiz? Mantive os ensinamentos do Campbell como uma base, uma fagulha inicial, e a partir dele eu fui buscar outros métodos. Passei pelo Mapa das Fábulas, Narrativa em 3 Atos, Método Snowflake, Narrativa em 5 Atos; li muito os passos do Neil Gaiman, Stephen King, David Lodge; comprei muitos, muitos livros de exercícios de escrita criativa. O que aconteceu? Eu ia testando cada método e, junto com o que aprendia durante o curso de Jornalismo, eu fui pegando uma coisa de um, pegando uma coisa do outro, adaptando, remodelando, até chegar ao ponto em que hoje eu tenho um método de escrita que funciona para mim.
Vou te dizer a real: vídeos de influencers literários no TikTok e no Youtube podem até te impulsionar, serem um gatilho para você começar, mas se você ficar só neles, você vai travar. Você precisa de base e essa base só vem com estudo.
Lembrei agora que um menino em 2022 me disse algo como:
— Ah, mas fulano de tal não faz nada disso, escreve livros que todo mundo lê, tem 500 mil seguidores, faz publi e tu faz tudo isso, estuda tanto, tem um monte de livro, mas não ganha quase nada com literatura.
É, filhão, só tem um detalhe: no final do dia, cabecinha no travesseiro, deitado com os próprios pensamentos, fulano de tal se sente uma farsa porque ele não tem base literária e escreve obras genéricas que qualquer um escreve — e vive desesperado que surja um outro fulano de tal que faça com que os 500 mil seguidores dele migrem para outra pessoa que faça uma dancinha mais nova e legal do que a que ele faz para vender livros.
Ficam as perguntas: você prefere ganhar muito agora, imediatamente, mas se sentindo um merda, sempre com medo dos outros escritores? Ou você quer ser um escritor minimamente decente que, com uma construção sólida, tranquila, vá ganhar muito daqui a alguns anos e não vai viver nessa competição com outras pessoas que escrevem?
Absorva um fato: o estudo te dá base para enfrentar o mundo. Se fortaleça com estudo (e não com seguidores) e você virá para o time das pessoas que deitam na cama e apenas dormem. E, voltando ao tema deste ensaio, o time das pessoas que não precisam ficar desesperadas porque “a inspiração não veio”.
Pare de buscar por números de curtidas e de seguidores, comece a observar o mundo, ligue o foda-se para o que as pessoas vão achar, ou deixar de achar, sobre o que tu escreves, e eu te garanto que tua vida literária será muito mais simples e prazerosa.
E chegará o dia em que, sentado naquele campo de margaridas, ao invés do desespero de esperar as nuvens se abrirem e um raio de inspiração surgir, você terá tranquilidade e apenas respirará. Então, escreverá sobre o próprio campo, as margaridas, uma formiga tentando carregar uma folha, as figuras engraçadas que as nuvens formam, e sobre como era cansativo quando você ficava lá, à espera de inspiração, enquanto a vida pululava ao teu redor.