Dor e beleza pelas estradas do nordeste (ou Carcará, João do Vale)
No Brasil-profundo, fora das bolhas sociais, há um país com outros brilhos, sons, falas, medos e jeitos.
AS ESCOLHAS QUE FAZEMOS AO LONGO DA VIDA MOLDAM O NOSSO CARÁTER. Quando decidi ligar o foda-se e largar Direito para fazer Jornalismo, eu não sabia que estava costurando em minha mente a chance de não ser só mais um babaca de classe média alta que acha que é algum merda importante só por ter um diploma de Direito. E o fato de eu ter saído de uma universidade particular para mergulhar pelos corredores da Universidade Federal do Maranhão foi ainda mais importante, pois me obrigou a sair da minha bolha e a lidar com todo tipo de pessoa.
Muitos veem as universidades públicas como em estorvo e seus professores como “esquerdistas sugadores do dinheiro público”. Eu sei, eu venho de uma família de professores. Essa é a realidade. O que os críticos ignoram é como o ambiente de diversidade de uma universidade pública é uma agulha que fura muitas bolhas, especialmente, devido aos programas de cotas que trazem pessoas mais vulneráveis para um ambiente como esse.
Na universidade pública, você tem a chance de aprender que todos têm o direito de ter o mesmo que você teve durante toda a vida — e é forçado a ver que muitas pessoas não vivem, elas apenas sobrevivem. E até isso é um privilégio.
Eu agradeço ao curso de Jornalismo e à UFMA por terem vomitado sobre mim as realidades do mundo. Quando você é obrigado a sair dos muros de casa e encarar o mundo, entrar em bairros que nem conhecia, falar com pessoas que antes julgava invisíveis, amarras se quebram, óculos dourados são retirados; você não apenas vê, você passar a enxergar as pessoas.
Essa percepção ficou impregnada em mim.
Algo que aprendi a apreciar é viajar de ônibus porque você tem a chance de mergulhar em cenários que não estão nas telas das redes sociais, nas novelas, filmes, séries, discursos. E é munido dessa percepção proporcionada pelos anos como repórter, imerso em realidades, que comecei a ficar ainda mais atento às nuances das margens das estradas, especialmente, aqui do nordeste, que é por onde eu mais perambulo.
Eu vejo os trabalhadores andando pelo acostamento da BR-135 às cinco da manhã em suas vidas de labuta, olhares de cansaço. Na parada de ônibus, uma mulher com o filhinho nos braços arruma uma bolsa enquanto olha para os lados com um semblante de tristeza. Em um barraco na saída de São Luís, um senhorzinho arruma panelas de alumínio em sua venda na beira da estrada na ânsia por um trocado; um cachorro pirento se coça e boceja diante da vastidão da vida que escorre diante dele.
No carro que passa ao lado do ônibus, uma menina com o rosto encostado ao vidro dorme e sonha com possibilidades infantes.
Pela vastidão dos campos, há casas-casebres perdidas na infinitude da pobreza. Terrenos com poucos bois magros se enfiam entre fazendas com centenas de bois gordos que olham nossa passagem com a soberba de uma altivez que irá em breve para o corte — nós também não somos assim? Crianças correm só de cueca atrás de uma galinha, sorrisos nas faces sujas de quem desconhece o mundo.
Urubus conversam pousados nas linhas de transmissão.
Há um carro velho em uma casa velha varrida por uma velha com uma vassoura velha varrendo as velharias de sua velha vida velha. Um cara joga uma bituca de cigarro no chão e pisa. Mulher de cócoras parte uma jaca. Carroça levando família é engolida pela poeira do ônibus. Um homem de moto carrega gaiolas com passarinhos. Igreja no meio de um descampado recebe seus fieis famintos por fé. Roçado queimado, devastado, cultivado, arado, seco, morto, sem nada, sem vida, esperança, labuta.
Nada.
Frentista encostado na bomba de gasolina coça a virilha e cheira os dedos impregnados de si. Pessoas de bicicleta, pessoas a pé, gente com sacola na cabeça, chão de terra batida. Menino chorando leva safanão de uma idosa. Sol de rachar, gritaria na lanchonete, briga para entrar na loja (“Promoção! Promoção!”). Roupas rasgadas, simples, floridas, suadas, desgastadas, cansadas, estressadas de serem tecidos-cobridores de corpos sem futuro. Moscas. Muitas moscas. Talheres em mãos calejadas, bocas sujas de farinha, sumo de laranja escorrendo pelo queixo do garoto, arroto, caroços de arroz no chão, travessa quebrada, alguém conta moedas para pagar o almoço.
Churrasqueiro abana as carnes, abana o rosto, abana a frustração.
Um pau-de-arara parte apinhado de gente e de sacolas. “Milho-cozido, olha o milho-cozido!” Bebê já com os dentes careados. Garota coça a cabeça. Mulher com pereba no pescoço. Alguém pisa uma lente de óculos caída na calçada. Bem-te-vi canta na praça. Mancha vermelha em uma cadeira de madeira em uma varanda azul. Mulher coça a bunda. Gatos brigam na areia.
Quatro pessoas em uma moto. Minto: são cinco. Há um bebê espremido entre o piloto e uma mulher. Respira?
Idosas com guarda-sóis. A raridade de uma banca de revista. Dois motoqueiros se abraçam. Carro de som berrando. “Não perca o super show de arrocha! Hoje!” Bicicleta velha. Fila na frente da lotérica. “Quebra-queixo! Quebra-queixo!”, oferece um pregoeiro. Uma aranha-caranguejeira sobe pela parede de um comércio. Homens reunidos debaixo de um ingazeiro. Berros, conversa alta, sorrisos de exagero, sacos coçados. Crianças jogando futebol em uma pedreira. Céu sem nuvens. Mulher idosa se balança em uma cadeira de macarrão. Mormaço escorre pelo rosto dela. Ave solitária no céu do sertão.
Homem com pele seca percorre a seca com olhos secos puxando a secura de uma jumenta e do filhote seco.
O idoso olha para mim e eu olho para o homem. Menino do ar-condicionado, homem de pés na chinela puída. Ele tira o chapéu em um cumprimento e sorri sem dentes com olhos de tristeza. Aceno para a dor que sei não ser a minha.
O ônibus parte para me levar de volta aos meus privilégios.
Muitos enaltecem minha força de ter sobrevivido à parada cardíaca, à tentativa de afogamento, ter acordado no meio de uma cirurgia; a queda da moto, o estupro, a vontade de morrer. Mas até a superação é um símbolo de privilégios, pois o apoio que encontrei, os médicos que achei, não estão disponíveis para aquele homem acenando para uma vida que ele nunca experimentará.
Na vida-labuta do Brasil-real, o sonhar é miragem e até apoio é privilégio.
O grito do meu conterrâneo João do Vale ao cantar “Carcará” é uma lembrança de um berro entalado no olhar de um povo. Lembrança de sorrisos de fé de quem olha para o alto e vê na ave do sertão um mistério de força, suplicando para que um Deus poeirento também lhes dê a mesma altivez daquele animal. O carcará que se adapta à realidade de fome revoa pelos céus de um país que se preocupa com tolices enquanto um menininho na beira da estrada grita para que, por favor, alguém compre um punhado de castanhas assadas enfiadas num saco de suquinho.
“Dois real, moço! Só dois real pra eu comê, por favor.”
No Brasil-profundo cantado por João do Vale e Chico Buarque, há dores desconhecidas pela mídia, ignoradas pelas cidades e usadas a cada quatro anos ao bel-prazer dos políticos. Nesse Brasil de invisibilidades, poeira, andanças; Brasil sem fotos, sem Instagram, de crianças de olhos cabisbaixos, buchos protuberantes e bocas famintas de comida e aconchego, burregos temem o céu, cobra queimada é refeição, aves são arremedo de avião e a “águia do sertão” é um deus que pega, mata e come.
No Brasil-real, distante de nossas futilidades em busca de números, os deuses também sofrem enquanto dilaceram as tripas dos homens que, por vezes, só querem a certeza da morte.
Música: Carcará, João do Vale (João do Vale e Chico Buarque)
Álbum: João do Vale, 1981
Carcará
Lá no Sertão
É um bicho que avoa que nem avião
É um pássaro malvado
Tem o bico volteado que nem gavião
Carcará quando vê roça queimada
Sai voando e cantando
Carcará
Vai fazer sua caçada
Carcará
Come inté cobra queimada
Mas quando chega o tempo da invernada
No sertão não tem mais roça queimada
Carcará mesmo assim não passa fome
Os burrego que nasce na baixada
Carcará
Pega, mata e come
Carcará
Não vai morrer de fome
Carcará
Mais coragem do que homem
Carcará
Pega, mata e come
Carcará é malvado, é valentão
É a águia de lá do meu sertão
Os burrego novinho num pode andar
Ele puxa no imbigo inté matar
Carcará
Pega, mata e come
Carcará
Não vai morrer de fome
Carcará
Mais coragem do que homem
Carcará
Pega, mata e come
Carcará
Carcará
Carcará
Pega, mata e come
Carcará
Não vai morrer de fome
Carcará
Mais coragem do que homem
Carcará
Pega, mata e come