E se não existisse preconceito?
De vez em quando, eu faço um exercício de “e se”. Porém, ele tem se tornado cada vez mais doloroso à medida que envelheço.
ÀS VEZES EU ME FLAGRO DEVANEANDO SOBRE UM OUTRO MUNDO. Nos meus sonhos, eu penso como seria o mundo se não houvesse preconceitos, nenhum. Um mundo livre, impossível, inalcançável… Eu ando pelas ruas e vejo apatia, percebo a violência no trânsito, noto os olhares que lançamos entre nós. Isso dói. E é nessa dor que várias e várias perguntas gritam dentro de mim…
Em um mundo sem preconceitos, quantas das mulheres que vemos hoje casadas estariam casadas e com filhos? Quantos homens estariam com suas esposas? Quantas brincadeiras de mau gosto sobre sexualidade simplesmente desapareceriam? Quantas pautas realmente sérias seriam discutidas se não houvesse a paranoia moralista de hoje em dia? Quantas crianças e adolescentes não se sentiriam mais livres? Quantas meninas, ao invés de serem jogadas obrigatoriamente no colo de seus “namoradinhos”, poderiam chegar em casa e dizer que têm “namoradinhas” sem levarem um tapa? Quantas palavras como viado, qualira, boiola, bicha, não mais fariam sentido? Quantos homens héteros se sentiriam mais à vontade para chorar suas dores sem serem taxados de frouxos?
Quantos homens seriam salvos por apenas largarem preconceitos sobre um mero exame de próstata?
Quantos meninos não estariam brincando com bonecas com pais conscientes de que isso nada tem a ver com sexualidade? Quantas mulheres não seriam, finalmente, donas de seus corpos? Quantas crianças hoje largadas por causa de gravidezes indesejadas simplesmente nem teriam nascido? Quanta energia mental e criativa não seria usada para coisas úteis, ao invés de tentar impedir a felicidade da população LGBTQIA+?
E já parou para pensar que, sem preconceito, a própria sigla LGBTQIA+ talvez nem existisse?
Quantas empregadas domésticas não seriam recebidas nos elevadores sem distinção de “social” ou “de serviço”? Quanto dinheiro não seria poupado com terapia? Quantos meninos e meninas não teriam aulas de orientação sexual sem que os pais quisessem matar os professores? Quantas machezas não cairiam por terra? Quantos pais largariam de ser “machões viris” para apenas ensinar aos filhos como ser vulneráveis? De quantos políticos não seríamos privados?
Quantos sorrisos não veríamos no rosto das pessoas transgênero por terem uma expectativa de vida maior do que 35 anos?
Quantas vezes não veríamos gols sendo comemorados com beijos entre os jogadores? Quantas vidas não seriam poupadas nos estádios sem a macheza que impõe agressões? Quantos casais diversos não veríamos pelas ruas? Quantos padres não seriam padres por não terem que se esconder atrás de uma batina? Quantas famílias seriam poupadas da desunião? Quantas mulheres ainda estariam vivas? Quantos LGBTQIA+ não teriam deixado de cometer suicídio? Quanto bullying desapareceria?
Quantos litros de lágrimas evitaríamos derramar?
Sim, eu penso muito nisso. Não deveria, eu sei. Porque dói. Dói saber que o mundo poderia ter sido melhor, mas, gerações após gerações, escolhemos esse simulacro de vida cheio de estereótipos e de exigências. Dói ver as igrejas falando sobre amizade e respeito, enquanto na prática humilham quem não se encaixa na tolice da “normalidade”.
Dói pensar que mais um colega meu LGBTQIA+ não aguentou a pressão sem sentido e se matou neste mês de maio.
Vou te confessar uma coisa: dói muito. Muito mesmo. Mais do que eu aparento.
Por baixo desta máscara de força, eu choro.