Eu e minha biblioteca
HOUVE UM TEMPO EM QUE EU SONHAVA EM TER PRATELEIRAS E MAIS PRATELEIRAS CHEIAS DE LIVROS, ONDE EU ME REFESTELARIA EM VIDAS ALHEIAS ENQUANTO SERIA IMPREGNADO DO CHEIRO DE NOVIDADES MISTURADO AO ODOR DE PÁGINAS AMARELADAS. Então, em tardes abafadas de sábado, cansado da morosidade da vida que apenas os fins de semana regidos pela obrigatoriedade do descanso podem fornecer, eu me deitaria no chão, esticaria a mão e deixaria meus dedos escolherem uma obra que fosse aprazível ao tato. Feito isso, apesar de certa dor nas costas devido a posição torta de quem se desdobra para ler, dores inerentes aos leitores vorazes, eu deixaria este mundo por algumas horas, entregue aos prazeres de Kafka, Shriver ou Telles.
Nesse dia, ao virar para ter uma posição melhor, eu descobriria o deleite do porcelanato gelado em contraste ao calor aviltante desta ilha. E me derramaria, num lapso entre capítulos, em agradecimentos por ter uma casa, o privilégio de um teto, a complacência que apenas alguns têm de, por serem artistas, verem o mundo “de outro jeito”, serem “mais sensíveis”, poder ficar por uma tarde inerte, mudo, entregue, silencioso, desmaiado, no vício literário de mergulhar em uma biblioteca.
Minha biblioteca.
Às vezes, ao invés da leitura, eu me contentaria com o trabalho (que me recusaria a chamar como tal) de limpar livro por livro. Talvez, quereria labuta mais intensa e decidiria, então, classificar por gênero, por cores, tamanhos de lombadas, ordem alfabética; autores, ano de lançamento, data da compra, quantidade de vezes que foi lido, se novo ou usado, até me dar conta, indulgente, que nada daquilo fazia sentido. Com um sorriso seguido de um balançar de cabeça, eu me resignaria ao fato de uma biblioteca (minha biblioteca) ser um espaço naturalmente anárquico e colocaria tudo de volta num caos controlado.
Quando chegassem visitas, mesmo aquelas pobres almas incapazes de saborear tal prazer, eu me derramaria em discussões sobre essa ou aquela história. Num lampejo de soberba, eu falaria sobre a quantidade de livros e, meio “sem querer”, que naquele ano havia lido “apenas 80 obras”, o que ficava longe do meu recorde. Isso sem contar aquela interminável lista de compras que, mês após mês, ganhava mais uns 20 ou 25 títulos sempre com a promessa de “um dia”, “quem sabe”. Por fim, ignorando o enfado do pobre visitante, que se perguntaria como acabara ali, mostraria aqueles exemplares que custaram algumas centenas de reais e certas raridades mantidas em plásticos bolhas para resistir ao tempo e à deterioração que ninguém, além de mim, se importaria.
Na minha biblioteca, os livros não seriam emprestados, mas, sim, doados com um ar de profunda autocomiseração como quem dá cestas básicas a uma família de refugiados. Encheria o peito para dizer quão dolorido fora doar “aquela coleção incrível”, que tanto demorei para completar, mas que eu teria sucumbido ao fato de haver “pessoas quem precisavam mais dela do que eu”. Escondido, encomendaria uma coleção nova em uma promoção qualquer e nunca a colocaria nas prateleiras para permanecer sempre com a aura de pessoa altruísta capaz de se desapegar de seus livros preferidos.
Orgulhoso, eu defenderia a minha biblioteca contra um mundo que não lê e não entende a leitura.
De vez em quando, na minha biblioteca, eu armaria um verdadeiro estúdio de cinema, com luzes, microfones ajustados e duas câmeras. Com ar de quem se mesmeriza diante daquela quantidade de livros, ignorando o privilégio de ser um filhinho de papai capaz de gastar R$800,00 à vista em um box de luxo de Bertold Brecht, eu gravaria vídeos para mostrar, humildemente, como, quase sem querer, eu tinha tantos títulos, sabe? Reclamaria do preço abusivo de algumas obras, faria dancinhas para instigar meus seguidores, mandaria encomendas para mim mesmo e abriria, com caras e bocas, como se fossem presentes de editoras. E, claro, começaria a cobrar para fazer reviews “sinceras” sobre certos títulos da moda. Ignorando a realidade brasileira, eu encabeçaria protestos contra algum novo aumento no preço dos livros, mas me calaria quanto ao fato de 90% das cidades do país não terem uma biblioteca.
Bom, foda-se! Eu teria a minha biblioteca. Paciência.
Com a chegada dos livros digitais, eu me renderia à tecnologia, aceitando também alguns audiobooks, sem dúvida. Contudo, ainda com o caráter de precisar “preservar meu legado intelectual”, eu compraria os equivalentes físicos de cada obra para exibir, estonteante, nas prateleiras que já estarão aos berros devido ao peso. O fato de não ter o que mostrar, pegar, exibir, me deixaria azedo e eu faria cada vez mais vídeos, uma série, sim, sobre “10 vantagens do livro físico” e a “importância de ter uma biblioteca”.
No fundo, temeria que as pessoas descobrissem como é mais vantajoso levar 20 mil títulos num aparelho do tamanho da palma da mão e que começassem a se questionar qual o motivo de eu ter 5 mil livros empoeirando dentro de casa e piorando minha sinusite.
Orgulhoso, eu defenderia a minha biblioteca contra um mundo que não lê e não entende a leitura. Ficaria estarrecido com os novos chips subcutâneos que transfeririam o conteúdo das obras direto para o cérebro, sem exigir leitura alguma. Só aí, finalmente, sentiria falta “daquele tempo dos livros digitais quando as pessoas ainda liam”. Refugiado em casa, seria um dos últimos a ter essa coisa chamada papel e, com luvas nas mãos, de vez em quando, apesar da miopia, eu pegaria os livros mais antigos apenas pelo prazer do toque.
Ao fim dos meus dias, ciente de que todos aqueles livros da minha biblioteca estariam em petabytes de armazenamento em extratos de DNA, perdidos em meio a um universo de conhecimento disponível que nunca seria aproveitado, eu procuraria um herdeiro para os meus livros. E não acharia ninguém.
Então, num último gesto de amor, quase implorando, deixaria em meu testamento a vontade de ser cremado junto à minha biblioteca.
E ali, meu corpo no meio da celulose, páginas vomitando o horror do carbono, eu seria, enfim, um com os meus livros. Fundidas, num traço poético do último leitor do mundo, seria o nada e o tudo ao mesmo tempo, num arremedo de posteridade que jamais chegaria.
Ninguém se importará.
E não acharia ninguém.