Eu queria voar…
Uma pequena reflexão sobre a vontade de transcender diante de um mundo que parece cada vez mais fadado à mesmice
EU QUERIA VOAR.
Fiz o comentário em uma tarde e logo me disseram que “lá em Raposa tem um grupo que pula de paraquedas”. Não! Eu não quero a droga de uma experiência de voo! Eu quero voar. Sim, eu sei, é impossível. Porém, o que aconteceu exemplifica a raiva que sinto diante de pessoas que se contentam com migalhas. Experiências completas. Sim, eu quero experiências completas. Talvez seja um desejo de transcender, entende? De fazer algo que realmente me arrebate. Confesso que sinto isso muito pouco.
Às vezes, tenho a sensação de que me prometeram emoções equivalentes a montanhas, mas na verdade só me entregaram punhados de terra.
Eu fico entediado com certa frequência, confesso. As músicas são as únicas coisas que de fato me prendem desde que me entendo por gente.
“Nem os livros, a escrita, a pintura?”, alguém pode perguntar, assustado.
Não, nem isso.
De vez em quando, com mais frequência do que eu gostaria de admitir, passo dias e mais dias sem conseguir ler. Veja bem: eu tento, mas não consigo. Me bate um tédio, um marasmo; uma convicção de que terei “mais do mesmo”, a mesma velha experiência de sempre. Com a escrita acontece algo semelhante.
Tenho dezenas (literalmente!) de roteiros escritos, elaborados, prontos para serem desenvolvidos. Mas não escrevo. A sensação de déjà vu, de esmiuçar as entrelinhas da vida de um personagem de novo — e de novo e de novo e de novo — me cansa. E o fato de hoje em dia a escrita, assim como a pintura, ser meu ganha pão tornou a experiência ainda mais pontilhada de um sentimento penoso.
Quem inventou a frase “trabalhe com o que gosta e você nunca se sentirá trabalhando?” é um idiota.
Na verdade, se você trabalhar com o que gosta, se transformar seu hobby esporádico em um trabalho cotidiano, há grandes chances de o prazer virar fardo.
Assim, a experiência se tornou cansativa. E é a música que me salva.
A música tem uma completude que me apetece. É como se as letras que eu julgo fazerem algum sentido para a minha vida me abraçassem vinte e quatro horas por dia. A música me liberta, me eleva, faz com que aquele momento seja, de fato, sublime.
A música me proporciona alguma sensação de voo.
Não à toa, costumo dizer que eu só dirijo porque escuto música. Não consigo tocar em um volante sem que minhas bandas preferidas estejam no banco do carona. Eu roubo um tanto dessa completude musical e transfiro para tudo o que faço. Nem sempre dá certo, é claro. Algumas vezes, minha mente sucumbe às canções e eu largo o secundário. Porém, quando tudo se encaixa, as coisas fluem.
Eu escrevo melhor, as telas são pintadas com mais afinco, o trânsito de São Luís me parece menos tedioso e cheio de homens que precisam provar sua masculinidade, a leitura acontece.
Ah, ainda bem que tenho a música... Tenho The cranberries, Sarah Brightman, PJ Harvey e Nação Zumbi. E Elza Soares, Legião Urbana, Coldplay e Gonzaguinha. E o bumba meu boi, os tambores de crioula e os pandeirões que me tornam maranhense. E tenho tantas outras pílulas que a doença do tédio fica sob controle para que eu possa suportar as pequenas experiências que são prometidas a nós quando nascemos.
Mas, infelizmente, em nem todas as experiências eu consigo fazer essa mescla.
O sexo, por exemplo, continua um tédio. O jogo da conquista é interessante. Aquela fase aventuresca de não saber o que virá, se dará certo. Gosto das preliminares, do toque, das carícias, da brincadeira. Porém, eu vivo em uma época de imediatismo até no sexo. É como se as pessoas f*dessem no mesmo clima do WhatsApp: ansiosas por uma resposta ágil e que não as façam perder tempo. Perco o interesse quando chega na obviedade da transa, quando começa a ânsia por gozar.
Um amigo já me disse que sou assexual. Estou cada vez mais disposto a acatar o rótulo. Vivemos em uma sociedade que classifica até o que não vê. Paciência.
Permaneço no meu mantra de “sexo é bom. é bom, mas é chato”.
Experiência…
Talvez eu tenha tido expectativas demais quanto ao sexo. Talvez, eu esperasse que tudo o que meus colegas conversavam aos cochichos lá aos doze, treze anos, significassem o suprassumo do prazer. Talvez eu quisesse que o sexo fosse de tal modo arrebatador que eu fosse às estrelas.
Não fui.
Pouquíssimas pessoas sabem que perdi a virgindade (oficialmente) aos 12 anos durante uma brincadeira de gato mia na quadra aqui da rua em uma noite de falta de luz elétrica. Junto a um colega, um ano mais velho, nos escondemos na casa dele e transamos. Fiquei tão transtornado, tão imerso na certeza de ir para o inferno, que dias depois transei com uma menina que brincavam ser mina namoradinha, também da minha idade. Hoje, quando lembro dessa bizarrice, sei que muitas das minhas questões sexuais vêm dessa época.
Perder a virgindade aos 12 anos vai f*der a tua vida. Se você conhece uma criança, evite isso ao máximo. Ainda mais em uma sociedade hipócrita que se diz tão preocupada com “nossas criancinhas inocentes”, mas está cada vez mais sexualizada e se recusa a fornecer educação sexual nas escolas.
Sim, eu lembro que achei aquilo tudo mecânico, matemático, forçoso, sentimentos que não mudaram. Trocam-se as estruturas, permanecem os buracos e os pinos. São pequenas mudanças diante do mesmo fim. No concluir da equação, chega-se sempre ao mesmo ponto.
Não, o sexo não me faz voar.
Um amigo já me perguntou se a pornografia faz isso. Não, não faz. Há um frisson inicial, um gosto pelo proibido, por ver aquelas pessoas em intimidades, mas logo perco o interesse. Sinto-me estafado. Não raro, chego à mesma conclusão: “Tá, é só isso? Sério?” Vou dormir.
Dormir me faz voar. Pelo menos, metaforicamente. Dormir me faz esquecer do bullying na época de escola, esquecer que fui abusado aos 10 anos, ironicamente, dentro de um armário; esquecer das mortes, esquecer das dores, esquecer da raiva por não alcançar o que tanto quero.
E dormir faz com que eu retorne, de vez em quando, à sensação que tive aos 17 anos. Com essa idade, fiz uma cirurgia de urgência devido a apêndice supurado. Cheguei desmaiado, a barriga enorme, uma loucura. No meio do procedimento, os cirurgiões descobriram que a situação era pior do que parecia porque minha cavidade abdominal tinha virado um repositório de pus e sangue. Tiveram que me lavar por dentro. E foi durante isso que tive uma parada cardíaca que durou 2 minutos e vivenciei uma Experiência de Quase Morte.
Ali, eu voei.
Até hoje, quase 20 anos depois, não consigo definir o que senti. Já concedi entrevistas, estou acostumado a imergir em mim, gosto do silêncio, não tenho medo de me escutar, mas nunca consegui traduzir em palavras ou imagens o que foi aquilo. Pior é que a maioria das pessoas ao meu redor não quer falar sobre o assunto.
Eu voo sozinho. É chato. Libertador, porém, chato.
Sim, eu queria voar. Diante do que vivenciei nos últimos anos, vendo a sociedade tão raivosa ao ponto de dar seu voto a um sociopata, tantas pessoas que matam umas às outras como se fossem formigas, religiões cada vez mais belicosas e distantes do amor defendido por Cristo (eles lembram das palavras de Jesus?); mais guerras, mais poluição, menos consciência, tenho absoluta certeza de que, se eu entrasse naquele túnel de luz novamente e me fosse dada a chance de escolher voltar ou não, dessa vez, eu não voltaria.
E voaria, enfim, para outro plano, ciente de que, sim, eu posso voar.
Eu sei voar.
Porém, como mencionei, ninguém quer saber disso. Convivo com pessoas que passam os dias, ou de olho em uma tela de celular, ou a todo momento olhando o aparelho para ver se há notificações. Um maluco querendo conversar sobre voar em uma EQM não se encaixa nessa equação.
Ninguém se importa.