Eu sou um sobrevivente do bullying

Memórias de alguém que demorou três décadas para entender a própria coragem — e como sobreviveu a tudo isso.

Henggo
7 min readMar 6, 2024
“Minimalist Life nº 50 — Dança com a Morte”, pontilhismo, Henggo

ATÉ HOJE, PRESTES A FAZER 36 ANOS, EU MINTO PARA AS PESSOAS. Insisto em dizer que a marca que tenho no joelho direito foi fruto de uma queda na escola, “coisa de criança”, correndo e caí. E sorrio. É mentira. Naquele dia, há 24 anos, eu não estava “brincando de pega-pega”, como me condicionei a dizer. Eu estava fugindo dos meninos que queriam me bater, escorreguei e explodi o meu joelho. Na coordenação, chorando, lembro que a coordenadora me perguntou o que tinha acontecido. Ao meu lado, estava um dos garotos que faziam bullying comigo. E eu menti enquanto ele me observava com aqueles olhos risonhos que diziam “se tu contar, ninguém vai acreditar, e eu vou te matar”.

No dia em que eu cheguei na sala de aula com os fundilhos da calça todo molhado, eu não “tive um acidente com a torneira” que fez todo mundo cair na gargalhada. Naquele dia, dois garotos me fizeram tirar as calças e a cueca e urinaram na minha roupa. Então, eu tive que lavar a calça e jogar a cueca no lixo.

Na 8ª série (hoje 7º ano), o professor de Matemática fazia uma competição para que, usando apenas palitos de churrasco e cola branca, fizéssemos uma ponte por onde ele rolaria uma bola de basquete. Se a ponte resistisse, a nota estava garantida. Eu passei uns 10 dias mergulhado em tentativas de fazer o trabalho e foi orgulhoso que vi a minha ponte não apenas resistir à passagem da bola, como aguentar coisas mais pesadas, como livros e pedras. Lembro da chuva de elogios de todo mundo, inclusive de outros professores, mas, infelizmente, a ponte não chegou em casa inteira.

Eu disse para mamãe que eu tinha “caído e quebrado” a ponte. Isso é mentira. Os meninos me seguiram na saída da escola, gritaram que eu era um “CDF de merda” e mostraram que aquela ponte podia até aguentar livros e pedras, mas não era imune à chutes e cuspes.

Como se sobrevive a isso?

No 2º ano do Ensino Médio, o professor de Artes passou um trabalho para que escolhêssemos uma obra de arte famosa e tentássemos reproduzir. Como eu sempre pintei e desenhei, desde muito criança, foi natural para mim me desafiar. Escolhi a famosa “Santa Ceia” de Michelângelo e, apenas com lápis de cor, reproduzi a obra em um papel de 3x3 metros. Foi um sucesso, mais uma vez elogios mil. Porém, a obra sumiu das paredes da escola alguns dias depois. Por anos, eu disse que não sabia o que tinha acontecido.

Isso é mentira. Os meninos a rasgaram na minha frente.

Anos antes desse fato, por uma ironia do destino, acabei em um grupo com alguns dos meus queridos bullys. Fomos fazer o trabalho na casa de um deles, filho de um juiz, e inventaram de brincar de bobinho, colocando alguém no meio enquanto os outros chutavam a bola para que o escolhido não a pegasse. Tentei fugir da brincadeira a todo custo, mas acabei convencido a “largar de ser cuzão”. Fui para o meio da roda e, feito idiota, tentava pegar a bola. Estava tudo tranquilo, até um deles chutar um pouquinho mais forte e bater na minha coxa. Depois outro chutou um tiquinho mais forte. E o outro um tantinho mais. Eu levei várias boladas, agachado na grama e escutando as gargalhadas, chorando na frente de todo mundo.

Quando até as meninas que zoam da tua cara gritam para que a brincadeira pare é porque o limite foi ultrapassado. Eu voltei para casa machucado, mas disse para a minha mãe que era só “coisa do futebol”.

Será que é por isso que hoje eu odeio futebol? Talvez sim.

Com mais de três décadas nas costas, eu ainda sinto um arrepio quando preciso usar o banheiro público. Coisas como estar urinando e ter garotos esfregando o pinto em você, receber jatadas de urina e, mesmo nos boxes reservados, escutar piadinhas e eventuais chutes na porta, isso deixa uma ferida profunda e muito, muito difícil de ser completamente cicatrizada.

Há alguns anos encontrei uma colega daquela época e, enquanto falávamos dessas coisas, ela me olhou bem séria e perguntou:

— Tu fostes estuprado?

— Fisicamente, não. — Eu respondi.

Os meninos sabiam que eu era bissexual. Não, eu nunca disse para ninguém, mas é o tipo de coisa que garotos adolescentes parecem sentir no ar. Eles me viam com minha namorada da época e gostavam de fazer perguntas capiciosas, apalpar o pênis quando eu passava, perguntar para mim se eu “dava conta” e se “não queria outra coisa”; faziam desenhos de homens nus e colocavam na minha mochila; nas aulas de computação (quer coisa mais anos 2000?) enviavam links de sites pornô gay.

Uma vez, na aula de Educação Física, eu entrei no banheiro e estavam todos em fila com as cuecas arriadas me esperando e balançando seus negócios.

Como se sobrevive a isso?

Há muitos aspectos peculiares a toda essa jornada. Primeiro é curioso pensar que eles promoviam todo esse horror de cunho sexual quando eu já tinha perdido a virgindade muitos anos antes. Oficialmente, aos 12 anos, com ambos os sexos. Por mais horrível que isso seja, creio que criei uma casca ali, talvez por notar que aquelas “brincadeiras” estavam abaixo do que eu já tinha vivenciado.

Aos 13 anos, em uma aula de natação, um garoto me viu olhando para um menino e tentou me afogar. Dos 13 aos 16 anos, bebi escondido tudo o que uma pessoa pode beber na vida, porém, minha “cara de santo” ocultava isso — e também era um chamariz para quem queria me fazer mal na escola.

Sim, é curioso pensar que havia dois Henriques nessa época: um que cresceu rápido demais, por volta dos 10 anos de idade, e outro que era cuspido na escola e tinha as calças arriadas nos banheiros.

Eu não conseguia levar o Henrique amadurecido para dentro da escola, mas o Henrique ferido estava dentro de mim, sempre, noite após noite, choro após choro. Cheguei à conclusão de que foi esse embate de personalidades que contribuiu ainda mais para que eu experimentasse tantas bebidas, cigarro e maconha. Aos 16 anos, quando tomei meu último gole de álcool, eu já tinha mais experiência de vida do que todos os garotos que me destruíam.

Como se sobrevive a isso?

O segundo ponto de curiosidade é como o bullying foi tão profundo, está tão arraigado na minha personalidade, que essas lembranças permanecem consciente e subconscientemente.

Aos 17 anos, em uma cirurgia de apendicite já supurada, em tive uma parada cardíaca que durou quase 3 minutos. Foi quando tive a Experiência de Quase Morte e tudo mudou. Os médicos dizem que eu tive muita sorte de não ter ficado com sequelas, a não ser uma: eu esqueci da minha vida até os 17 anos. Fiquei nesse limbo durante alguns meses após a recuperação, até que comecei a lembrar, mas apenas de eventos tão traumáticos que essa morte não conseguiu, de fato, matar. E dentre eles estavam as memórias do bullying.

Conscientemente, eu estava mergulhado em cada um desses pontos.

No subconsciente, eu notei que o bullying estava presente quando ganhei meu primeiro concurso literário (na antiga Editora Subtítulo, na antologia “O Livro do Fim do Mundo”, em 2011) e fiquei desesperado enquanto meus colegas comemoravam. O motivo: o medo de que a editora quisesse que eu desse entrevistas ou aparecesse em algum lugar. Ali eu percebi que as risadas que os garotos tinham quando eu ia apresentar trabalhos na frente da escola tinha, afinal, criado raízes. Trabalhei muito esses sentimentos de autoboicote, cheguei a ter canal no YouTube e no Instagram gravando vídeos com o meu rosto, entrei na Rádio Universidade e fui repórter, apresentei programas, mas nunca superei essa sensação de que alguém do público uma hora ou outra começaria a rir de mim.

Como eu sobrevivi até hoje com isso?

Quando ouço pessoas dizendo que “bullying é só besteira”, eu me pergunto se elas têm consciência de quantas pessoas devem sofrer dessas mesmas dores, mas se recusam a admitir — ou nem se dão conta de que elas existem.

Por muitos anos, eu mesmo me recusei a aceitar meu papel como sobrevivente do bullying. Ficava com a sensação de que de fato era mimimi, talvez até coisa da minha cabeça, ou uma narrativa que eu tinha inventado para me dar um ar de heroísmo. Hoje sei que esses pensamentos são em grande parte fruto de uma sociedade que, apesar de estar mais aberta, ainda se recusa a conversar a sério sobre esse tema. Somado a isso, o machismo, o conceito do ser macho bruto que não chora é incutido em todos os meninos. Podemos fugir, mudar, estudar, conhecer, mas resquícios dele permanecem em nós.

É algo que te faz esquecer que você é, acima de tudo, humano, falível, capaz de chorar.

Ainda bem que houve o mergulho na arte. A arte salva e é um repositório dos vômitos que jorram de nossas almas. Pelo menos ali, nos livros, nos quadros, na música, nas ilustrações, nestes artigos, eu posso esmiuçar minhas memórias, revirar os lixões da minha mente e buscar por algum tipo de conforto.

Agora, quando me perguntam como eu sobrevivi a tudo isso, eu posso respirar fundo, até sorrir e responder: eu sobrevivi graças à arte.

O abismo das memórias não parece mais tão assustador.

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Henggo
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Written by Henggo

Escritor, Revisor & Ghostwriter. Coleciona trilhas sonoras e nome estranhos de pessoas enquanto espera a chegada dos ETs. Saiba mais em linktr.ee/Henggo

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