Fãs linchadores e a misoginia velada
“GENTE, MAS ELA TÁ MUITO GORDA!” Essa frase me marcou porque foi dita por um fã. Em 2018, no auge da minha imersão em redes sociais, eu fazia parte de vários fã clubes, brasileiros e estrangeiros, de Sarah Brightman, minha cantora favorita. Era gratificante ter a oportunidade de conversar sobre um assunto que eu tanto gosto com pessoas que estavam na mesma vibração que eu. Trocar ideias, debater o setlist dos shows, possibilidades, piadinhas que apenas quem é fã daquele artista consegue entender, compartilhar músicas raras que só nós conhecemos. Porém, talvez pela imersão social que a vida como repórter de rua me proporcionou, talvez por ter vivenciado o bullying durante muitos anos, talvez por estar imerso em uma família quilombola de mulheres com opiniões fortes, eu sentia e via que havia algo errado em meio à toda aquela felicidade devocional.
Elogios escondiam acidez, o que era mero incômodo guardava traços de preconceitos, o amor recendia amargor, temperos de rancor recendiam nas entrelinhas e eu comecei a olhar por trás do véu da mera idolatria. Quanto mais eu afundava em reflexões, mais eu percebia aspectos de etarismo, misoginia e até de diferenciação social nos grupos que eu participava.
Sarah Brightman é uma atriz, dançarina e soprano inglesa conhecida por ser a musa inspiradora do compositor Andrew Lloyd Webber para a concepção do musical “O Fantasma da Ópera”. Ganhou ainda mais notoriedade devido ao dueto com Andrea Bocelli em “Time To Say Goodbye”, por ter cantado duas músicas-tema de Olimpíadas (“Amigos para Siempre” em Barcelona, 1992, e “You and Me” em Beijing, 2008) e por ser uma das poucas artistas a ter convencido o compositor Ennio Morricone e o criador japonês Hayo Miasaki a deixarem-na adaptar canções da autoria deles. Com 50 anos de carreira, Sarah Brightman não tem mais o que provar, algo que até os críticos mais ferrenhos já admitiram.
Mas não para alguns fãs.
Dos fã clubes dos quais eu participava, notei como os que mais reuniam pessoas dispostas a detratar Sarah Brightman eram os da América Latina, os fã-clubes brasileiros, mexicanos e argentinos sendo os campeões desses sentimentos. Adjetivos como “inchada”, “gorda”, “cheinha” se uniam a coisas como “está velha e cansada”, “não tem mais idade para cantar”, “nessa idade ninguém consegue cantar desse jeito”, “dancinhas que não combinam com a faixa etária”. E percebo que, à medida que Sarah envelhece, esses “fãs” parecem cada vez mais dispostos à exigências de juventude e beleza estereotipada. Por sorte (ou eu assim considero), Sarah nunca foi uma artista de se expor em redes sociais, delegando tudo à sua equipe. Então, creio que esse tipo de atitude não a alcança.
Mesmo assim, machuca.
Que idosos irão emergir dessa geração tão desesperada por beleza e por juventude?
Machuca porque é uma manifestação recorrente quando eu olho para a relação dos fãs com artistas mulheres. Você já percebeu que o peso do tapa da internet, esse grande tribunal fecal, é muito maior quando é com uma cantora? Se alguém fala que “cantor fulano de tal está velho e com rugas”, isso passa despercebido; é sexy, demonstra maturidade, respeitabilidade. Agora, eu peço para que você preste muita atenção ao modo como o soco é mil vezes mais forte em uma mulher. Se “fulana de tal está velha e com rugas”, nossa, “fulana de tal está acabada, mal-cuidada, sem marido, sem sexo, velha, com depressão” e toda a sorte de detrações.
O massacre que a atriz Paolla Oliveira sofreu em dezembro de 2023, com centenas de pessoas dizendo que ela estava “fora de forma” é um triste retrato (mais um) de sociedades que ainda tomam o feminino como alvo preferencial de críticas. Há séculos é assim. As pessoas não aprendem. E trazendo para a minha experiência nesses grupos de fãs, o assunto revela o enraizamento cultural desses preconceitos, já que muitos fãs não têm noção de que reproduzem a misoginia e alimentam uma indústria de fofocas e de busca por uma beleza inalcançável.
E sabe o que mais entristece: o fortalecimento desse tipo de imaginário é uma contribuição para a normalização de procedimentos estéticos em clínicas clandestinas e uso de produtos naturais com promessas irreais de emagrecimento. Por mais que sejam atitudes perigosas e que colocam a vida em risco, há toda uma noção de que, apesar de tudo, a pessoa “estava em busca de ficar melhor com ela mesma”. Será mesmo?
Se essas pessoas que infelizmente perderam suas vidas, por exemplo, em clínicas de lipoaspiração, não estariam vivas e felizes se não houvesse o bombardeamento de propagandas estéticas pelas redes sociais?
Se vivêssemos em uma sociedade que admirasse uma beleza menos estereotipada, menos midiática, não seria diferente?
Será que não estariam vivas se fossem estimuladas a primeiro abraçar o psicológico e só depois pensar no estético?
Eu admito que o maior problema deste texto é que esse é um assunto que traz muitas camadas e eu não consigo imergir em todas. Há aspectos mil: histórico, cultural, financeiro, afetivo, questões de carência, o modo como as pessoas tendem a imprimir seus anseios nas celebridades que veem na tela; medos, raivas, angústias, vidas incompletas, vidas que foram obrigadas a tomar rumos diferentes, maternidade, religiões, medo da morte… Eu não sou psicólogo, psiquiatra etc., mas algo me diz que ver seu ídolo envelhecendo traz uns gatilhos de morte para algumas pessoas. E aí vem a crítica, como se o fato de Sarah estar envelhecendo ou da Paolla Oliveira não ter mais o corpo que tinha aos 20 anos significasse que o mundo está acabando.
É ridículo.
Algo em que tenho pensado bastante nos últimos anos, especialmente pós-pandemia, é na seguinte pergunta: que idosos irão emergir dessa geração tão desesperada por beleza e por juventude? Você já parou para pensar nisso? Por causa do meu ofício como escritor, uma atividade constante que eu faço é sentar em lugares públicos para observar as pessoas. Nesses exercícios sociais, o que mais vejo é o exagero de poses, fotos, cliques, tentativas de parecer “incrível”, “mais forte”, “mais interessante”. Isso é válido, é claro, desde que a pessoa esteja consciente de que faz isso por si, não em busca de aplausos. Mas, não sei explicar, os olhos, os olhares de muitas dessas pessoas emanam gritos de tristeza, desespero, cansaço. São sorrisos que só ficam nos lábios, não alcançam a boca e revelam que muitos fazem tudo isso apenas como uma máscara de felicidade. Então, à noite, naquilo que nomeio de “hora do travesseiro”, o momento pré-sono em que todos nós estamos sozinhos com nossos pensamentos, nesse momento o desespero da realidade morde, estapeia, adoece.
Como vai ser quando essas pessoas, a minha geração Y e as posteriores, envelhecerem? Quando perceberem que as promessas da indústria estética são uma farsa e que a tecnologia, por mais que esteja avançada, não vai deixar ninguém “eternamente com 20 anos”? Você acha que essas pessoas estão preparadas para envelhecer?
É melancólico ver a deterioração do viver.
O caso de Sarah Brightman que mencionei é apenas um entre vários exemplos de como artistas femininas são frequentemente julgadas por padrões duplos relacionados à idade e aparência. Esta tendência não é limitada a um gênero musical ou cultura específica, mas é um fenômeno global.
1. Madonna: considerada uma das maiores artistas pop de todos os tempos, Madonna enfrentou críticas severas à medida que envelhecia. Ela foi criticada por continuar a se apresentar e agir de maneira que muitos consideram “inapropriada” para sua idade. Os fãs e a mídia frequentemente comentam sobre sua aparência física, ignorando seu legado e contribuição artística. Na The Celebration Tour, turnê iniciada em 2023 para comemorar os 40 anos de carreira, Madonna foi criticada por continuar sensual, continuar usando roupas curtas, continuar falando sobre sexo aos 64 anos de idade — afinal, pessoas idosas não transam, né?
2. Whitney Houston: a falecida cantora Whitney Houston também sofreu ataques relacionados à sua aparência e voz, especialmente nos anos que antecederam sua morte. A pressão para manter uma imagem perfeita e a luta contra o vício foram amplamente divulgadas, muitas vezes ofuscando seu talento e conquistas.
3. Adele: após perder uma quantidade significativa de peso, a cantora britânica Adele enfrentou tanto elogios quanto críticas. Alguns fãs expressaram decepção, alegando que ela havia cedido à pressão da indústria por uma imagem mais “aceitável” de beleza, enquanto outros celebraram sua transformação.
4. Beyoncé: enquanto Beyoncé é frequentemente elogiada por sua aparência e talento, ela também enfrenta críticas relacionadas à idade e ao corpo. Comentários sobre seu peso após as duas gravidezes se somaram a expectativas sobre como ela deve se apresentar estando agora mais velha. Em 2023, na abertura de sua Renaissance Tour, em meio aos elogios sobre a grandiosidade da turnê, havia comentários ora sobre “sensualidade demais para alguém da idade dela”, ora sobre “não ter mais o mesmo corpo de antes”.
5. Shakira: a cantora colombiana Shakira, conhecida por sua dança e voz únicas, também não é imune a comentários sobre sua aparência. Conforme envelhece, há uma expectativa contínua de que mantenha sua imagem jovem e enérgica. O caso da separação conturbada com o jogador Piqué foi um vômito de chorume sobre ela, talvez, quem sabe, não ter “sido uma esposa melhor” e que “um homem procura fora de casa o que não tem dentro”.
6. Dolores O’Riordan: vocalista da minha banda favorita (The cranberries), Dolores sempre teve seios pequenos, aspecto que lhe dava uma aparência andrógina. Após a separação de seu marido, quando Dolores colocou silicone, em vários grupos de fãs houve críticas massivas, ignorando o mais importante: ela estava feliz?
7. Elza Soares: uma das vozes mais poderosas da música brasileira, Elza Soares enfrentou críticas e preconceitos ao longo de sua carreira, especialmente relacionadas à sua idade e aparência. Apesar de ser aclamada por sua força e talento, Elza não escapou dos comentários maldosos sobre o envelhecimento e as escolhas estéticas.
8. Rita Lee: nossa saudosa rainha do rock brasileiro, Rita Lee também lidou com comentários sobre sua idade e aparência. Mesmo sendo uma artista revolucionária, não foi poupada das críticas que frequentemente focaram em seu envelhecimento e como ela agia e falava, ao invés de seu legado musical.
9. Maria Bethânia: irmã de Caetano Veloso, que também está com seus 70 anos nas costas (lembra do “sexy, demonstra maturidade, respeitabilidade”?), Maria Bethânia é uma das maiores cantoras da MPB. Com uma carreira brilhante, ela também foi alvo de comentários sobre seu envelhecimento e vestuário, muitas vezes ofuscando sua arte e contribuição cultural. Você já leu os comentários que fazem sobre o fato de ela usar o cabelo solto, grisalho e volumoso?
O panorama apresentado, tanto no contexto internacional quanto no brasileiro, revela uma realidade intrincada e desafiadora. As artistas femininas, constantemente sob o escrutínio público, enfrentam uma batalha dupla: por um lado, há a expectativa de que mantenham um padrão estético inatingível, e por outro, são criticadas quando tentam se adaptar ou resistir a esses padrões. Esta situação reflete uma misoginia enraizada e um etarismo persistente, que não apenas desvaloriza a experiência e o talento dessas artistas, mas também perpetua estereótipos nocivos na sociedade.
A preocupação obsessiva com a juventude e a beleza física como parâmetros de valor ignora a riqueza e a profundidade que a maturidade traz, tanto para a arte quanto para a vida humana. É essencial reconhecer e desafiar esses padrões, não apenas para promover uma indústria do entretenimento mais equitativa e inclusiva, mas também para fomentar uma cultura que respeite e valorize as mulheres em todas as fases de suas vidas. A mudança requer um esforço coletivo — da mídia, dos fãs, dos profissionais da indústria e da sociedade como um todo — para redefinir e expandir nossa compreensão da beleza, do talento e do valor humano além das barreiras da idade e da aparência.
Que Sarah Brightman e Paolla Oliveira possam envelhecer em paz, com os corpos, rostos, rugas, pernas, formas que quiserem ter.
No resumo, fica a pergunta de sempre: esses fãs se importam com o talento e com a felicidade, ou apenas com a imagem ideal que eles fazem dessas artistas? Elas são um produto que gera felicidade, ou elas ainda são seres humanos com vontade e felicidade própria? Você vê o ser humano ou só enxerga o produto que te faz esquecer como a sua vida é medíocre?
Como Madonna canta em Human Nature:
And I’m not sorry
E não me arrependo
It’s human nature
É a natureza humana
And I’m not sorry
E não me arrependo
I’m not your bitch, don’t hang your shit on me
Não sou sua puta, não jogue sua merda em mim
E finalizo com Cazuza em sua profética Vai à Luta:
Porque os fãs de hoje
São os linchadores de amanhã.