Como “Harry Potter” estimulou meu gosto pela leitura (Depoimento)
Dezenove anos depois, percebo o quanto ter iniciado minha vida literária com Harry Potter moldou quem eu sou.
Eu lembro como se fosse hoje: o ano era 2000, eu estava com 11 anos (completaria 12 anos em breve), estava em um dia qualquer na escola. Em plena 5ª quinta série no “Colégio Girassol” (uma escola particular de São Luís/MA que vivia em disputa pelo primeiro lugar no ranking de classificação do vestibular), eu vivia uma época de pressão para ler livros clássicos da literatura brasileira — “a verdadeira literatura”, como diziam os sabedores do tema. Cheguei da escola e minha mãe acabara de chegar de uma viagem a São Paulo. Entregou-me um presente.
“Um livro?”, desconfiei pelo formato do volume.
“Tu vais gostar.”, ela disse.
Com um muxoxo, rasguei o saco de presente e olhei para aquela capa amarela. Que coisa esquisita! Um menino em uma vassoura, um cachorro de três cabeças, uma bolinha com asas e aquela mão asquerosa na contracapa. E que nome era aquele, J. K. Rowling? Rowling!
Fiquei curioso. Abri. Li a primeira página. Tio Válter, um homem bonachão em uma vida comum, percebe que há um gato com marcas de óculos no focinho. E corujas entram e saem da casa do homem.
Que engraçado…
De peculiaridade em peculiaridade, de sorriso em sorriso, mistério em mistério, terminei “Harry Potter e a Pedra Filosofal” em um dia. Sim, um dia! Nunca antes na história daquele menino algo assim havia acontecido. Ler um livro em um dia, sem ser obrigado, sem ser para nota, com uma linguagem que eu compreendia? Nunca!
Até conhecer Harry Potter.
Foi o início de uma transformação e, devo adiantar a conclusão, ler se tornou muito mais divertido e encarar os livros do vestibular foi como nadar a favor da correnteza e ainda fazer firulas dentro d’água.
Agora, neste ano de 2019, mais uma vez acabou. Reli a série completa e estou estupefato mais um vez. A magia continua.
É muito bom mostrar que, apesar do que dizem, ter iniciado minha vida literária aos 12 anos com Harry Potter foi essencial para quem eu sou hoje: capaz de ler quatro, cinco, seis livros por mês e um apreciador da literatura. Sem contar a carreira como escritor. E não: eu não pendi para a fantasia, como muitos pensam. A beleza de tudo isso é que Harry Potter foi o empurrão para que eu entrasse no mundo das letras e fosse capaz de beber de todas as fontes possíveis, desde as ditas “mais fáceis” até as aclamadas “eruditas e de difícil compreensão”.
Dezenove anos depois de ter lido o primeiro livro, hoje eu leio de tudo por causa dessa “obra menor”.
É uma pena que as escolas insistam em uma visão que pende apenas para os clássicos da literatura e esquecem que o maior objetivo é incentivar os jovens a ler. E, sinceramente, “O Cortiço” (Aluísio Azevedo ) é lindo, “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (Machado de Assis) é interessante, “Cais da Sagração” (Josué Montello) até arrepia só de pensar, mas com 13, 14, 15 anos, sinceramente, não são livros nem um pouco instigantes — ainda mais em tempos em que a literatura disputa com o Free Fire, com o YouTube e com o WhatsApp (e vai perder. É um fato!). Foi só depois de imergir em Harry Potter, ao perceber a beleza dos livros, que eu retomei essas obras exigidas pela escola e pelo vestibular e, só então, tive a capacidade de apreciar essas tramas com toda a minha alma.
Ler é um processo. É como praticar um esporte: você começa aos pouquinhos, vai gostando e, quando vê, já está correndo 10km sem nem perceber. Quando você obriga uma criança a ler algo que não a estimula (e, somado a isso, quando os pais também não leem), teremos um jovem que olha para um livro e pensa “Que saco!” e um adulto incapaz de ler por prazer e de passar isso às gerações mais novas.
É um ciclo de afastamento
No começo, o importante não é a polidez ou a classe da semente, mas sim o plantio imediato para cultivar o hábito.