Imagens que ninguém vê

Percepções durante um passeio de São Luís para Mojó, Paço do Lumiar

Henggo
5 min readFeb 28, 2024
“Casa e cachorro plantados no esquecimento”, aquarela. Henggo.

UM CACHORRO ERGUE AS ORELHAS QUANDO UM CARRO ESTACIONA QUASE EM CIMA DELE. Assustado, manqueja seu cansaço até a sombra de uma barraca de frutas onde deita suas dores, o focinho erguido como se farejasse as intenções do humano. Humanos são esquisitos, ele deve pensar. Pobre cão invisível.

Ele também olha imagens que ninguém vê.

Ali perto, um homem empurra um carrinho de mão abarrotado com o lixo das pessoas que não o veem. Passa ao lado de uma 4x4 preta. Dentro do veículo, o motorista gesticula para a mulher no banco do carona, que o olha com olhos aéreos de quem já escuta a mesma maldita ladainha há anos. Em um momento, ela desvia a atenção e nossos olhares se cruzam, eu de dentro deste ônibus de turismo, ela de dentro de sua bolha veicular. Enquanto isso, seu companheiro dos gestos expansivos sorri para a menina que a pouco lhe vendeu batata doce. A garota não retribui a atenção.

Homens pensam com cabeças demais…

Está quente apesar do ar-condicionado. Aquela parada no meio da estrada para comprar frutas empolga minhas três dezenas de companheiras de viagem. Quando a organizadora da excursão anunciou que parariam, foi um frenesi para descer. Tanto é que paralisaram a reza do Terço para poderem comprar suas coisas.

Jesus pode esperar, afinal. Prioridades.

Duas mulheres caminham pela rua, ambas com as alças de suas bolsas bem seguras entre os dedos. A animação conduz a conversa, mas seus semblantes de alegria têm um lapso de preocupação quando percebem que o homem com o carrinho de mão cruzará com elas em uns trinta segundos. A pobreza intimida. Vinte, quinze, dez, cinco segundos. Ele passa cabisbaixo sem olhar para a humanidade, parece trôpego. Uma das mulheres olha para trás e cochicha algo com a colega. Prosseguem, talvez se sentindo mais seguras.

Pergunto-me se aquela pobre alma não terá bebido exatamente para esquecer que faz parte daquela mesma espécie que se diz tão evoluída.

Uma senhora com quem viajamos acena para mim lá da primeira poltrona. Aceno de volta. Não sei o nome dela. Sentado na traseira de uma Parati, um garoto aponta para os vizinhos como se fosse rei por um dia em sua carruagem de metal. Nas barracas de frutas, as mulheres da Legião de Maria cutucam a maciez dos produtos, perguntam, experimentam. A dona de uma das barracas amarra o cabelo e abana o rosto com uma tampa de plástico, o calor lhe escorre pelas costas feito lama grossa. Na frente dela, a idosa de vermelho aponta as coisas e precifica a vida.

O cachorro a observa, sereno, quem sabe pensando quão tolos são os humanos.

Alguém diz que está na hora. As mulheres começam a subir com suas sacolas, sentam-se numa empolgação como se tivessem acabado de encontrar o próprio Cristo — ou o Roberto Carlos, talvez mais importante. O falatório dura pouco tempo. Alguém se lembra que a reza do Terço ficou paralisada. Rezam.

Partimos.

Estrada, casas, mato. Estrada, casas, mato. Mato, mato, mato. Casas. Estrada.

No terreiro de uma casa, um menininho cai da bicicleta, rola e gargalha com os amigos. Mais à frente, em uma quitanda, presumo que um grupo de senhores conversa sobre política, pois um deles veste a camisa da seleção masculina de futebol e bate na mesa. Mulher caminha pelo acostamento, pássaros riscam o céu. Paramos em um semáforo. Um motoqueiro se agacha ao lado da moto para ver alguma coisa. Talvez não faça ideia de qual seja o problema, mas faz cara de entendido como se espera de um macho.

Nós, homens, somos tristes…

Terrenos perdidos passam aqui fora, tanto mato para pouca gente. Uma sacola flutua no córrego sob a ponte. Cada sociedade tem os barcos que merece. Balançamos ao passar pela buraqueira. Há uma casa sem vida em um campo sem vida de um mundo que vive escondido. Do alto da janela do ônibus, vejo muros mais altos que um castelo, ladeados por moradas sem muros com gente sem dentes que sorriem para mim.

A estrada escorre na fluidez da manhã de sábado. Lixo pelas margens da rodovia recepciona os turistas. “Salve Rainha, Mãe de Misericórdia…”, rezam as mulheres. Do lado de fora, crianças olham para este ônibus com barrigas famintas por misericórdia. Um cemitério lotado de morte está tão cheio que já há lápides do lado de fora, em um terreno baldio. Detrás de uma cerca de madeira, vejo o contraste de uma caminhonete S-200 novinha, ainda sem placa, que repousa em uma garagem descascada e tomada por cupins. Galhos de um coqueiro estão deitados em um campo, preguiçosos. A erosão corrói parte da estrada. Telhas se escoram na parede de uma casa enquanto dois homens arrumam o telhado. Em meio a um matagal, uma casa se ergue como uma planta qualquer.

Ninguém a rega.

“… iluminai os que estão nas trevas e nas sombras da morte…”, as legionárias clamam num fervor.

Na varanda de uma casa, uma idosa se balança em uma rede, o pezinho tocando no chão para impulsionar a vida. Carteiras escolares abandonadas em um terreno. Um campinho de futebol emula resquícios de felicidade. Nuvens de tempestade nos perseguem, apesar do sol. Um garoto e uma senhora na beira da estrada esperam para passar para o outro lado. Há uma casa tão alta que parece uma caixa de leite. Juçareiras crescem livres por aqui e ali. Rosas brancas em vasos feitos com garrafas pet. Uma plaquinha (“Morada do amor”) indica o orgulho de um dono por sua casinha.

Cantoria sobre esperança ecoa dentro do ônibus.

Cercas protegem uma terra grande demais que provavelmente abriga gente de menos. Toalha azul em um varal solitário. Travesseiros se bronzeiam em uma cadeira. Alguém ergueu mais quatro linhas de tijolos para se esconder do mundo. Homem de bermuda coça o pinto e olha para o horizonte. Folhas secas criam um tapete sobre o areal. Barcos flutuam no porto enquanto as legionárias cantam sobre uma liberdade que, segundo a letra, só pode ser obtida por quem se predispõe a ficar entre as quatro paredes de uma igreja.

Há gente que acredita em uma liberdade que não têm e há aqueles que a têm, mas nem sabem que tem.

Um idoso se banha em uma caixa d’água sem se importar com o entorno. A cueca dele está transparente e me parece folgada demais. Porcos-do-mato olham o ônibus passar. Mãe amamenta o seu bebê. Uma simples casa porta-e-janela ousa morar em meio às chácaras. Caminhão com milheiros de tijolos. Outro campo de futebol conversa com a maré que o avizinha.

“Espírito, espírito, que desce como fogo…”.

Palmeira incendiada transmite sordidez. O motorista faz uma manobra de ré. Estacionamos. Chegamos a Mojó.

Sentado, espero as minhas companheiras de viagem descerem. Vejo um pássaro pousado em uma cerca do outro lado da estrada. Amarelo com asas marrons, ele olha para nós com a superioridade de quem vê o mundo de outros ângulos. Vira a cabecinha de um lado para o outro, curioso com o falatório. Ele logo se cansa e voa para longe.

Liberdade. Eu o invejo.

Desço do ônibus e sou puxado para uma foto do grupo. Enquanto o motorista é instigado a pegar vários celulares para tirar várias fotos que em breve sumirão no meio dos vários Gigabytes das galerias de vários aparelhos, eu só me pergunto uma coisa: afinal, quantos viram o que eu vi?

Em meio a risos, conversas e abraços, eu me sinto só.

E cego.

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Written by Henggo

Escritor, Revisor & Ghostwriter. Coleciona trilhas sonoras e nome estranhos de pessoas enquanto espera a chegada dos ETs. Saiba mais em linktr.ee/Henggo

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