Jeitinho brasileiro

Conto

Henggo
4 min readApr 13, 2021
#praTodosVerem | Descrição da Imagem: no meio de uma rua, sobre uma faixa de pedestres, vê-se uma pessoa deitada enrolada com a bandeira do Brasil.

CHEGOU POR VOLTA DAS 7, O SOL AINDA PREGUIÇOSO E O TEMPO MOROSO NAQUELA MANHÃ. Julgou ser muito cedo, mas, ao observar os companheiros de trabalho, viu que fizera bem em ter saído de casa naquela hora. Todos já estavam arrumados e em seus lugares. Ficou nervoso. Era o seu primeiro dia ali, naquele novo posto, com aquelas pessoas.

Respirou fundo.

Procurou por um banheiro e achou um desses públicos instalado em uma viela. Foi um aperto: quase deixou a sacola com as roupas cair dentro do vaso, por pouco não escorregou no piso encharcado com um líquido suspeito e bateu os cotovelos uma dezena de vezes enquanto se vestia. Por fim, estava pronto.

Saiu do banheiro meio desconfiado, olhares lançados de um lado para o outro. A rua ainda estava vazia, uma placidez que acabaria dali a algumas horas. João escondeu a muda de roupa atrás do banheiro químico e sorriu de sua esperteza. Mas logo a felicidade murchou. Ao olhar o próprio rosto na vitrine de uma loja, desesperou-se perante a limpidez da pele e a brancura dos dentes.

Ó, meu Deus!

Procurou pela rua e depois de alguns minutos de busca encontrou, ali em uma fissura entre o calçamento de pedra, uma coisa preta. Usar ou não usar? Eis a questão. Queria muito um pedaço de carvão ou mesmo maquiagem. Fez uma anotação mental para pedir um pouquinho à mulher no dia seguinte e agachou-se. Benzeu-se um milhão de vezes e mandou ver.

Para a sua sorte, a gosma era só lama, porém, “só lama” já era o suficiente para lhe causar asco. Segurou o vômito e passou primeiro no cabelo. Bagunçou um pouco e em segundos tinha uma bela obra de arte. Depois, parou com o dedo sujo a centímetros dos lábios. Lembrou-se dos filhos.

Quando aqueles bando d’diabo crescerem vou escravizar os três para pagarem por esse sacrifício que tô fazendo por eles…”

Abriu a boca e foi. Sentiu arrepios. A língua foi inundada com aquele gosto de terra e de podridão. Ergueu-se e mirou-se na vitrine de novo, os dentes arreganhados para o reflexo. Quando a funcionária do outro lado largou a vassoura e saiu aos gritos loja adentro, João percebeu que fizera um bom trabalho.

Agora, bastava arranjar um lugar legal e pôr seu lado de ator para trabalhar.

Caminhou alguns metros, meio a esmo, até se lembrar de uma das lojas mais movimentadas da Rua Grande. Rumou para lá e alegrou-se ao não ver mais ninguém na porta. Sentou-se na calçada em frente, deixou um filete de baba escorrer pelo canto da boca e fez cara de piedade.

Vinte, trinta, quarenta minutos.

Nada. Nenhum centavo.

Alguma coisa estava errada.

Olhou para as roupas. “Intactas demais!”, concluiu. Inclusive, roupas compradas naquela mesma loja, olha que ironia! Fingiu um acesso de raiva, rolou pelo chão e se rasgou todo. Estava no auge de sua interpretação digna do Oscar quando sentiu alguém lhe tocar a perna. Parou e, meio tonto, olhou para a senhorinha com olhar clemente.

Ela lhe estendia cinco reais.

Pegou e foi agradecer. Mordeu a língua. Sangrou. Ainda bem. Se fosse muito educado e polido, alguém desconfiaria. Mas também não queria ficar calado diante de tamanha generosidade.

Entre a fala e a mudez, latiu.

A idosa se afastou com lamentos de “o mundo está perdido, minha Nossa Senhora!

João se deu por satisfeito e voltou a rolar pelo chão e se babar por inteiro. Em trinta minutos, já contava com 30 reais no bolso. Porém, em um dos seus rolamentos épicos não percebeu um fio desencapado no chão e levou um baita choque. Os gritos atraíram a atenção e mais quarenta reais foram para o seu bolso.

Depois do susto, levantou-se ainda tremendo, os membros meio retorcidos, olhos revirados e respiração pesada. Cambaleou. As pessoas, talvez por pena, talvez por culpa, talvez para mantê-lo longe, deram-lhe mais cinquenta reais. O dono de um restaurante chegou até a lhe levar um prato de almoço. Com os tremeliques, acabou sujo de molho de macarrão e em uma situação ainda mais deplorável. E toma-lhe mais dinheiro!

E assim foi até o final do expediente.

Lá pelas 18 horas, arrastou-se para longe, negou ajuda de alguns vendedores ambulantes. Quase em correria, chegou à viela. Por sorte, não haviam levado suas roupas. Agradeceu por estar escuro e trocou-se ali mesmo. Aproveitou a roupa de trabalho para tirar um pouco da sujeira do rosto e torceu para estar apresentável.

Ao embrenhar-se pelo meio das pessoas, ninguém mais lhe deu atenção.

Perfeito!”, comemorou.

No ônibus de volta para casa, fez algumas contas. Antes de ficar desempregado, ganhava R$ 1500,00 por mês como eletricista. Trabalhava seis dias por semana, portanto, a média era de R$ 62,50 por dia. Em compensação, no seu primeiro dia como mendigo os bolsos já estavam com quase R$ 200.

Os olhos brilharam, a mente maquinou.

Ao entrar em casa e ver a família, aproximou-se da mulher, fez um aconchego, segurou-lhe a mão e, sem ela notar, pôs o dedo da pobre na tomada da sala. O choque não foi tão forte quanto o que ele tivera na Rua Grande, mas Matilde ofegou, abalada, e até chegou a enrolar a língua.

João ficou encantado. Estava perfeito. Com umas aulinhas de atuação e uma boa maquiagem, seria uma pobre mãe desamparada de cortar o coração.

Virou o rosto e olhou para os filhos. As pessoas sempre têm pena de crianças de rua. Sorriu.

Já pensava na marca do carro que iria comprar dali a uns meses.

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Written by Henggo

Escritor, Revisor & Ghostwriter. Coleciona trilhas sonoras e nome estranhos de pessoas enquanto espera a chegada dos ETs. Saiba mais em linktr.ee/Henggo

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