“Joker” e o “Holocausto Brasileiro” de cada dia
Vivemos em bolhas e somos incapazes de olhar para as ruas. Nós somos Murray Franklin.
EU TENHO COULROFOBIA (FOBIA DE PALHAÇO) DESDE CRIANÇA, MAS É ENGRAÇADO COMO O CORINGA NUNCA ME AFETOU. Pelo contrário, é o meu personagem preferido junto com o Batman e, obviamente, o meu vilão preferido. Isso até esta madrugada do dia 26 de novembro de 2019.
“Joker” é assustador. E não apenas por causa do personagem e da atuação arrepiante do Joaquim Phoenix. O medo veio por ser uma trama plausível. Ao tirar o Coringa da fantasia e trazer o personagem para um contexto verossímil, que estamos vendo acontecer em várias partes do mundo, Todd Phillips esfrega em nossas caras uma verdade: vivemos em bolhas e somos incapazes de olhar para as ruas.
Nós somos Murray Franklin. E no momento em que eu me vi nessa posição, durante o filme, eu estremeci. Psicologicamente, o incômodo que você sente em relação à alguém não tem a ver com o outro, mas com você mesmo; é algo que há naquela pessoa que te incomoda e faz ressoar sentimentos.
Eu ressoei Murray Franklin.
Nós decidimos o certo e o errado com um clique em nossos teclados, não? Nós definimos o que é engraçado ou não, aceitável ou não, bonito ou feio. Nós, Murrays Franklins da vida real, andamos “cancelando” as pessoas, pois somos superiores. Nós não vemos os Coringas que estão por aí. E, quando os vemos, chutamos, batemos, fazemos questão de humilhar, desqualificar e apontar excentricidades. Nós andamos em uma fase de pisar ao invés de estender mãos ou de debater.
A internet virou o nosso “Murray Franklin Show”.
A pesquisa TCI Domicílios de 2018, realizada pela NICbr, relevou que quase um terço dos domicílios brasileiros não têm acesso à internet (29%), E, quando vemos os dados por classes sociais, o abismo fica ainda mais claro e conversa com um dos focos de crítica de “Joker”: enquanto nas classes A e B são 99% e 93%, respectivamente, com acesso, na classe C esse percentual cai para 69% e nas D e E para 30% dos domicílios. E aqui eu falo apenas da internet! Imagine em aspectos mais sérios como acesso à educação, acesso à saúde, água encanada, coleta de lixo, empregos, segurança…
No momento em que o filme comenta que “as pessoas estão cansadas e estressadas” eu me vi transportado para o que tem acontecido em diversos países do mundo, em especial na América do Sul. E é um fato: as pessoas ESTÃO cansadas. As pessoas estão revoltadas, raivosas e em ebulição. E exatamente ao vermos esses fatos que “Coringa” se mostra genial.
Há violência, algo em ebulição, saúde precária, desemprego, pensamentos estranhos, salvadores da pátria, vandalismo, desigualdades, mortes… É Gotham City ou é a realidade?
O segundo ponto é a questão da doença mental. Aí, meus amigos e amigas, é um buraco mais fundo do que as fossas oceânicas. Foi impossível eu não lembrar do livro “Holocausto brasileiro” da jornalista Daniela Arbex. Nessa obra, temos uma visão sobre o Hospital Colônia de Barbacena, em Minas Gerais e o modo como as pessoas com algum transtorno mental ou alguma diferença do que era tido como “normal” eram tratadas nessa instituição. Mas não apenas nela. “Holocausto brasileiro” é um retrato do nosso país que, guardadas as devidas proporções, ainda reflete nossos preconceitos.
Só para ter uma noção, estimam-se que as mortes chegaram a quase 60 mil pessoas e que a arrecadação com a venda dos corpos tenha alcançado os R$ 600 mil. Não é para se revoltar?
Arthur Fleck está aqui, está aí nas ruas da sua cidade, nas nossas vizinhanças, nos ônibus, nos pedintes, debaixo das pontes ou em nossos convívio, que seja, mas de modo marginalizado. Vemos essas pessoas, porém, não as olhamos. Ouvimos sem escutar. Aceitamos sem nos aproximar. E, quando acontece a ruptura desses muros sociais, caímos na barbárie.
“Joker” não é fácil, não é passável e muito menos mero entretenimento. É um filme denso, incômodo e, ao meu ver, necessário. Muitos criticaram a “irresponsabilidade” do diretor ao trazer tanta violência. Irresponsabilidade? Acho que não. Eu vejo como coragem de tocar na ferida. E mais coragem ainda ao usar um personagem tão conhecido para trazer essas vozes.
Eu comecei o filme calado e terminei sem saber o que fazer. Não compreendo como alguns ao meu lado no cinema sorriram em algumas cenas. “Joker” não é engraçado, o riso de Fleck não é jocoso, a situação exposta não é uma piada. Todd Phillips joga sobre nós os fardos que queremos esconder, mas que estão em nossas portas e precisam de reflexão.
As máscaras sociais podem pesar muito.
Ano: 2019
País: Estados Unidos
Gênero: Thriller | Suspense psicológico | Drama
Direção: Todd Phillips
Produção: Todd Phillips | Bradley Cooper | Emma Tillinger Koskoff
Roteiro: Todd Phillips | Scott Silver
Baseado em: Joker por Bill Finger | Bob Kane | Jerry Robinson
Elenco: Joaquin Phoenix | Robert De Niro | Zazie Beetz | Bill Camp | Frances Conroy | Brett Cullen