Nascemos para morrer
Sobre a liberdade de se saber finito num mundo que se desespera por juventude eterna e vidas cada vez mais longas
O RELÓGIO ESTÁ ESCONDIDO. Ainda bem. Há algo de obsceno nesse girar de ponteiros, uma comiseração diante do inevitável fim. O Tempo sorri de nós em seu tic tac orquestrado. Com sua batuta forjada na certeza de nossa finitude, ele dita a música de nossa mortalidade:
vocês já nascem morrendo
vocês já nascem morrendo
vocês já nascem morrendo
vocês já nascem morrendo
tic-tac, tic-tac, tic-tac
fim
Não é interessante? Ah, por favor, não tenhas medo. Essa é apenas a essência do que é ser humano.
Ser… humano
Ser… finito
Ser… vazio
Enquanto estamos lá, imersos no líquido amniótico, o Tempo nós ignora. Sim, crescemos, evoluímos, desenvolvemos quem somos, porém, não somos nada. Portanto, o Tempo mal vira o rosto para uma espiadela. Então, ao primeiro berro diante da inevitável entrada de ar em nossos pulmões, os relógios começam a despertar, ponteiros giram, e nós começamos a morrer.
Nascemos para morrer. Fim. Aceite.
tic-tac, tic-tac, tic-tac
fim
tic-tac, tic-tac, tic-tac
fim
Você escuta a música? Não? Que pena…
Desde tempos imemoriais, há três perguntas que a humanidade se faz em relação à própria existência: “por quê?”, “pra quê?” e “pra onde?”. Por que nascemos? Pra que viemos a este mundo? Pra onde vamos após o fim? E, no final das contas, as respostas são sempre as mesmas, respectivamente: pra nada, para nada e para lugar algum.
Claro, claro, há toda a questão religiosa e filosófica em torno disso. Mas, tenhamos sensatez, a busca pela resposta nos serve mais como tentativa de encontrar algum objetivo na vida do que propriamente como uma vontade de saber o que vem depois da curva da foice. É só um alento.
Sabe quando as pessoas inventaram o diabo para justificar seus erros? Da mesma forma, inventaram a vida eterna como não terem que encarar a realidade de sermos meros animais, banais, mortais, que não são especiais.
Você NÃO é especial. Ponto.
Para grande parte das pessoas, é assustadora a ideia de que nós, seres tão incríveis, únicos, postos aqui “à imagem e semelhança de Deus”, não tenhamos um destino maravilhoso, santificado até. A noção de “nascer para morrer” é contra o próprio sentido de esperança. Aceitar isso é, antes de tudo, ter a noção de fazer o bem, ser justo, estender a mão ao próximo, não à espera de afagos num pós-vida, famintos por um deus indulgente que abrirá as portas da eternidade. É uma atitude de fazer o correto agora, no presente, por puro altruísmo, puro senso de humanidade, sem esperar nada em troca.
E aí é que mora o problema. Em uma sociedade que cada vez mais prefere o altruísmo exposto nas redes sociais enquanto se isola atrás da tela de um celular, a realidade se deteriora sem ninguém perceber.
As religiões são importantes porque, apesar de todo o preconceito que difundem, elas funcionam como mecanismos de controle social. Por vezes, a pessoa controla seus instintos mais animalescos, inerentes a todos nós, não por sermos “seres racionais dotados de polegares opositores”, e sim por termos uma noção de pecado, um fogo que, dizem, nos aguarda mais à frente. Isso sem contar o Deus onipotente e onipresente que vive com duzentas câmeras à lá Big Brother apontadas para cada ser humano.
vocês já nascem morrendo
vocês já nascem morrendo
vocês já nascem morrendo
Esse controle social é o que mantém certos brios entre as pessoas. Admitir que nascemos, vivemos, morremos e ponto final, abraços!, adeus!, até nunca mais!, é uma noção que, diante das sociedades atuais, pode levar à barbárie ao invés da empatia. Afinal, por que eu seria bom se não há nada depois do fim? Se não há consequências para os meus atos? Se não há um Deus para ver o que faço e dar likes, joinhas e curtidas?
As pessoas precisam que o Tempo continue escondido; que os relógios de pulso e nas telas em nossas mãos não mostrem a realidade que nos aguarda, apenas o tic tac da ansiedade dos tempos modernos. Contudo, escondidos ou não, os ponteiros continuam a girar. E é bonito porque a certeza da finitude gera humildade, destrói a máscara de “seres especiais”, faz com que levemos a vida de forma mais simples e direta.
Infelizmente, as pessoas não querem ver isso.
Os relógios que tiquetaqueiam enquanto apagamos nossas velas de aniversário, sorrindo para fotos perdidas nas nuvens, são emissários do Tempo.
E gargalham do tempo que perdemos com tolices.