“O Avesso da Pele”: o Brasil precisa de terapia
Uma nação em crise clama por terapia enquanto a censura tenta silenciar suas verdades incômodas.
ANO DE 2021, AUGE DA PANDEMIA, MEADOS DE MAIO. Eu estava perambulando pelas indicações da Amazon quando o livro “O Avesso da Pele” surgiu para mim. A narrativa do Jeferson Tenório talvez não fosse uma indicação tão certeira para quem já estava estressado e cansado com a Covid-19, mas algo naquela dor trazida na sinopse, naquela capa que por si já contava uma história, me instigou a prosseguir. E por alguns dias eu fui pinçado da distopia pandêmica e jogado de volta à realidade nossa de todos os dias, realidade essa vivenciada há séculos.
A história do Pedro, um cara negro de Porto Alegre que perde o pai, Henrique, em uma abordagem policial, é crua, brutal, palpável, emocionante, identificável. Costumo dizer que uma narrativa pujante é aquela que você lê e tem a impressão de que irá encontrar aqueles personagens na esquina. E em “O Avesso da Pele”, saiba disso, você encontrará muitos Pedros, Henriques e Marthas que você já viu, vê e verá — isso se você não for um deles. Essa é uma narrativa sobre um filho que vomita sua revolta, expõe feridas sociais, o racismo estrutural enraizado em nossa sociedade; o modo como os fardos jogados sobre a população preta influenciam também nas relações íntimas, familiares, nos lugares que seriam de acolhimento.
“O Avesso da Pele” é a história de um Brasil (in)visível; a história crua sobre um país miscigenado que ignora suas origens pretas, enaltece seus colonizadores, tenta apagar a própria História e, ano após ano, no Dia da Consciência Negra debate se não deveria existir um “Dia da Consciência Branca”. E hoje, março de 2024, ao ver a polêmica educacional em torno desse livro, eu noto como o Jeferson Tenório criou uma obra necessária.
Essa obra incomoda porque obriga o público a se enxergar nessa opressão e/ou nos opressores. Como a Psicologia ensina, o incômodo que sentimos em relação a alguma coisa não tem a ver com essa coisa especificamente, mas sim com nós mesmos.
O Brasil precisa de terapia.
Primeiro porque nas últimas décadas noto como formamos uma sociedade que não se entende com o papel da escola. Por um lado, temos pessoas cada vez mais atarefadas que, por motivos mil, tiveram filhos e, sem tempo para criar, jogaram seus rebentos no colo dos professores. Contudo, ao mesmo tempo que querem isso, retiraram dos professores a autoridade necessária, básica, para exigir respeito dentro da sala de aula. Percebo que muitos pais se esqueceram de algo que a grande Elke Maravilha costumava falar: “instrução é na escola, educação se dá dentro de casa.”
A pessoa tem filho, não tem tempo (ou paciência) para educar, exige que a escola faça um papel que seria da família, porém, sem que os professores possam reprender essa criança de forma alguma. Não há algo errado nessa equação?
Eu venho de uma família formada em sua maioria por educadores, minha mãe inclusive, e nestes 36 anos de vida sou testemunha ocular de como a realidade dos professores se deteriorou nesse sentido.
Há o caso de um professor ameaçado por pais porque chamou a atenção do filho deles, um inocente que estava apenas quebrando uma carteira. Um diretor fez uma reunião com a equipe docente para alertar sobre uma mãe que reclamou porque a filha “não podia se vestir com mais liberdade” — por “mais liberdade” significava transformar o blusão da escola em uma espécie de abadá de carnaval. Os alunos de um colégio fizeram um abaixo-assinado contra uma professora que exigia leituras demais. Casos de alunos que agridem (ou tentam agredir) professores são vários. Uma colega minha que enveredou pelo mundo das Letras teve de encarar uma mãe revoltadíssima porque a professora não compreendeu que a filha, que tentou dar um tapa no rosto da educadora, “estava só expressando sua autonomia.” (sic) E é nessa e tantas outras que a autoridade em sala de aula foi substituída por receios, angústias e ameaças, muito disso baseado em uma noção equivocada de que crianças e adolescentes devem ser poupados ao máximo da realidade a fim de evitar traumas.
É claro que essa é uma noção de alguém que não é antropólogo, sociólogo, psicólogo, etc. Porém, me parece muito óbvio que a comoção em torno de “O Avesso da Pele” tem muito a ver com um olhar distorcido sobre essas primeiras fases da vida. Você soma isso com a ascensão de grupos ideológicos que amam pautas morais esdrúxulas (e que mascaram a discussão de problemas realmente urgentes) e eis aí a fórmula para a censura de um livro.
O mundo está em um colapso climático, há guerras acontecendo em todos os continentes, os indígenas yanomamis continuam sendo massacrados por garimpeiros, chuvas ainda alagam cidades e destroem a vida das pessoas, adolescentes estão com cada vez mais problemas psicológicos, continuamos a ser o país que mais mata pessoas LGBTQIA+ no planeta, as mulheres brasileiras têm mais nível educacional, mas recebem 20% a menos que os homens, níveis de feminicídio alarmantes, Pedros, Henriques e Marthas têm balas perdidas endereçadas diretamente a eles… e o problema do Brasil é “O Avesso da Pele”.
O Brasil precisa de terapia.
O que acho ainda mais peculiar é como os mesmos pais preocupadíssimos que seus filhos não tenham acesso a um livro com “palavras de baixo calão” e “cenas impróprias” estão na sala com o celular na cara enquanto seus inocentes e maravilhosos anjos estão trancados no quarto com um celular nas mãos. E vou dizer: hoje, os pequenos bibelôs de 11, 12, 13 anos de idade, meu amigo e minha amiga leitora, sabem muito mais “palavras de baixo calão” do que um livro pode proporcionar. Eu tenho vontade de pedir aos “cidadãos de bem” para entrarem em plataformas como o Reddit, o X (Twitter) ou o Discord e darem uma olhada furtiva no que seus anjos andam fazendo, dizendo e gravando internet afora. Alguns pais revoltados disseram que “o livro deveria ser classificado como erótico e inapropriado para menores de 18 anos”. Os filhos desses pais estão no quarto, com um celular à disposição, internet à vontade. Vocês realmente acham que “O Avesso” da Pele” é a coisa mais erótica e inapropriada que os filhos de vocês já viram? E mais: vocês realmente acham que censurar um livro vai impedir esses adolescentes de descobrirem a sexualidade?
Bom, talvez esses pais e educadores sérios saibam que tudo isso é inútil e ridículo, é claro. Porém, como o fato do vizinho dormir com um homem é uma pauta mais grave e apocalíptica, creio que apenas ignorem o que os filhos fazem madrugada afora, não?
As máscaras são reconfortantes.
Uma cena marcante e simbólica para mim foi no ano de 2023 quando a polícia descobriu um grupo que estimulava o chamado “estupro virtual”, incitando crianças e adolescentes menores de idade a prática de atos impróprios e ilícitos. A cereja (podre) do bolo é que o líder desse grupo era exatamente um adolescente de 14 anos. Em outro caso, um garoto da mesma idade é suspeito de chefiar um grupo que vendia links de acesso ao sistema judiciário. Mas claro que o problema do Brasil é “O Avesso da Pele” e esses são apenas “casos isolados”, “adolescentes brincando” e “coisas da idade”, como eu li em alguns comentários. A melhor das mensagens foi a seguinte: “a polícia fica gastando tempo com criança brincando no computador enquanto a esquerda tenta obrigar mulher a fazer aborto.”
Definitivamente, o Brasil precisa de terapia.
Sociedades quem vivem tentando “tapar o sol com a peneira” constroem países que não evoluem. Pior ainda, com a ascensão das inteligências artificiais, uma tecnologia sem volta e cada vez mais impositiva, uma população sem senso crítico ficará sujeita a ser dominada por aqueles que usam essas tecnologias para enganar as pessoas.
É exatamente o que temos visto, não?
Um país que não lê, que não valoriza seus professores e que mal tem bibliotecas públicas é um país escravizado por fake news, dependente do que um punhado de pessoas diz ser “do bem”, ou “ético e moral”, segundo conceitos deturpados que garantem poder e domínio à esses líderes.
Muitas pessoas comemoraram o fato do livro ter sido censurado porque isso fez as vendas da obra crescerem quase 1400%. Alguns disseram que “censuram, mas o povo vai ler”. Pois bem, que povo?
A maior parte da população não terá acesso a esse livro. Não apenas por essa censura direta, estúpida, covarde, mas também por uma espécie de “censura elitista velada”. Afinal, quem tem acesso à livros no Brasil, quem têm condições de adquirir uma obra de R$40, não é a mulher que está lá na favela tendo que criar 6 filhos sozinha e ainda lidando com enchente e falta de um banheiro.
Eu nunca esqueci de quando fui repórter da Rádio Universidade aqui em São Luís. Um dia, fui fazer uma reportagem em um dos lugares mais pobres da capital maranhense, a Vila Jumento, um emaranhado de palafitas imerso na sujeira. Após entrevistar uma das moradoras, eu fiquei conversando com aquela senhora. Papo vai, papo vem, ela me perguntou por que eu tinha feito Jornalismo. Eu disse que gostava muito de escrever, já havia publicado livros, e queria melhorar, ter mais técnica, aprender mais. Foi aí que ela disse o que nunca esqueci:
— Meus filhos nunca vão ler um livro teu. — Eu perguntei o porquê. — Porque eu tenho que escolher entre comprar um caderno pra eles ou comprar um pacote de macarrão. Quem tá chorando com o bucho vazio não tem tempo de ler.
Aquilo foi um tapa na cara que ainda ressoa quase 15 anos depois. Essa frase, naquela casa, imerso na brutalidade do mundo, aquilo me educou. “O Avesso da Pele” é sobre aquela senhora. E é exatamente essa educação, por mais impactante que seja, que os pais e educadores “de bem” estão afastando de “nossas criancinhas inocentes”, afinal, elas não podem ficar traumatizadas, por favor!
Vamos criar bolhas. Se meus filhos não vêm, então, não existe. Simples assim. Façamos uma nova dancinha.
Enquanto os pais brigam por causa de “O Avesso da Pele” e seus filhos-bibelôs sorriem para as câmeras na tentativa de dialogar com estranhos porque a família está na sala imersa em outro mundo, incapaz de dialogar com os pequenos, Pedros, Henriques e Marthas nascem, sobrevivem e morrem sem ninguém ver.
O Brasil precisa ser virado do avesso.