O Caçador de Mensagens (ou Animal Instinct, The cranberries)

Texto-Piloto do projeto #MemóriasMusicais no qual exploro canções que fazem parte da trilha sonora da minha vida.

Henggo
7 min readSep 6, 2024
Vê-se, diante de uma praia, uma mulher segurando a mão do filho em uma cena melancólica, mas bela.
Arquivo pessoal.

A PRIMEIRA… Lembramos de muitas “primeiras”: a primeira vez sexual, a primeira briga, o primeiro beijo, a primeira separação; primeira ida a um show sozinho, primeiro filme assistido no cinema, primeiro livro que nos fez gostar de ler. Mas, e a primeira música?

Veja bem: não falo aqui daquela “primeira música de todas”, ouvida, é muito provável, quando você ainda era um bebê com dias de vida. Claro que há pessoas habilidosas em “lembrar” até de quando estavam no útero nadando de um lado para o outro ­­­ — algumas dizem se lembrar até de quando não passavam de um embrião… Porém, não me refiro a nada disso. Deixando as peculiaridades de lado, o que abordo aqui são aqueles primeiros acordes incríveis, aquela primeira vez em que a noção de música ganhou novos ares e passou a ser mais do que uma simples equação de letra, melodia, ritmo, partitura e métrica.

Falo da primeira vez que você notou que havia uma mensagem em alguma música, longe de ser uma mensagem qualquer. Milhões poderiam escutar a mesma música, centenas podiam cantá-la, mas aquela canção, naquele dia, em um determinado contexto de vida, aquela música era para mim. Apenas para mim…

Era mais uma tarde enfadonha de sexta-feira depois de uma semana corrida. Lá estava eu no curso de inglês no bairro do Monte Castelo, ouvindo o professor declamar o bom e velho verbo TO BE — como se isso fosse me tornar fluente em alguma coisa.

As aulas seguiam sempre na mesma dinâmica:

— “Hello! How are you?” (“Olá! Como você está?”) vinha em saudação, seguida por alguma piada estranha sobre brasileiros, italianos, russos e alemães em cima de um prédio, ou entrando em algum bar. Depois, nós nos sentávamos, abríamos as apostilas, recitávamos verbos, fechávamos as apostilas, fazíamos duplas de conversação e ficávamos lá, fingindo falar alguma coisa em inglês enquanto o professor fingia aprovar.

Algo engraçado era como nossas conversas sempre iniciavam com “What’s your name?”. “Qual é o seu nome?”, sério isso? Meu amigo, se tu já estudas comigo há quatro anos em uma turma de só doze alunos e ainda não sabe qual é o meu nome, sinceramente, essa informação é inútil! Acorda pra vida!

E, navegando no verbo TO BE — sempre ele — seguíamos até o término da aula. Mas não naquele dia

Naquela sexta-feira, depois de mais uma rodada de conversas sem pé nem cabeça, a sala de aula foi agraciada com um novo elemento: um aparelho de som, algo raro hoje em dia, mas muito comum ali no início dos anos 2000. Vou te dizer: nós vibramos. Imagine o que é você passar 4 anos na mesmice e de repente vir uma mudança? Acho que até ficamos emocionados.

Percebendo nossa empolgação, o professor se sentiu como um político no palanque que de repente nota que pescou a atenção da multidão diante dele. Contudo, foram mais quinze minutos de explanações sobre as diversas formas de aprender inglês, como a música ajuda e blá, blá, blá… Quando já estávamos prestes a dormir sobre as carteiras, nadando em nossa própria saliva, o professor se dignou a apertar o PLAY.

Apesar das minhas memórias de infância e adolescência terem sido distorcidas devido a uma parada cardíaca aos 17 anos — assunto para outro artigo — , os primeiros acordes de violão da música “Animal Instinct” do The cranberries, até hoje, mais de vinte e cinco anos depois, ainda me arrepiam. Claro, o The cranberries é minha banda favorita, porém, essa música construiu tal memória afetiva que superou até as sequelas da parada cardíaca. Naquele dia, sentado ali no curso de inglês, eu me ajeitei na cadeira e apurei os ouvidos. Então, quando Dolores O’Riordan começou a cantar com sua voz rouca, eu flutuei para longe daquela sala.

Sério: estou arrepiado agora enquanto escrevo isso. Foi e ainda é algo muito, muito forte.

Em um primeiro contato, eu entendi pouquíssimo da música (o que diz muito sobre esse curso de inglês…), mas a melodia e a rouquidão de Dolores foram suficientes para me prender. Eu já tinha escutado outras músicas na vida, é óbvio. Cresci em uma casa muito musical, ainda bem. Porém, até aqueles 12 anos, nenhuma canção havia despertado um algo a mais; vontade de gritar, cantar junto, crescer, entender o mundo.

Aos 12 anos recém-completados, eu me senti livre. Não no sentido rebelde, tendo uma epifania tresloucada sobre a vida, o universo e tudo mais, Douglas Adams. Não. Eu me senti livre porque ali, naqueles pouco mais de 4 minutos de “Animal Instinct”, eu descobri um estilo do qual eu gostava, algo que para mim parecia valer a pena ir atrás, mergulhar, gastar um tempo. Não era mais um “ouvir por ouvir”, o mero “ligar o rádio e deixar tocar”, ou então o “escutar sem vivenciar”. Com aquela música, eu ganhei a vontade de observar o mundo de outro jeito, de mergulhar naqueles versos e encaixá-los no meu dia a dia.

Acima de tudo, “Animal Instinct” e sua mensagem sobre o instinto de proteção maternal me fez querer mergulhar em mim.

Para minha surpresa, aquele professor meio “maluco” me deu, involuntariamente, o melhor presente: a vontade de aprender mais, correr atrás, ouvir (e mesmo ler) alguma coisa e sair da superfície, tendo o trabalho de ir um pouquinho além do óbvio. Não à toa, hoje me tacham de chato quando pergunto o porquê das pessoas gostarem de certas canções…

Se são boas ou ruins, não tenho capacidade técnica para afirmar. O gosto é algo muito pessoal, é claro; vai além do simples “gostar”, envolvendo também as experiências de vida de cada um. Mas, para mim, a música — seja ela sobre guerras, Deus, amor, traição, ou beber no bar até cair — ela tem que deixar algo a mais em quem escuta. E observe: não digo “deixar algo a mais” como sinônimo de “algo edificante sobre direitos humanos, contra a guerra e com alguma mensagem social”. Esse “algo a mais” é uma simples mensagem, como se aqueles poucos minutos de audição fossem uma conversa ao pé do ouvido entre o artista e o ouvinte.

É, pensando bem, eu sou mesmo meio chato com isso. Foi mal. Porém, naquela sexta-feira distante, “Animal Instinct” me transformou em uma espécie de “caçador de mensagens”. Leia-se: mensagens para mim, encaixadas na minha vida. Creio que seria uma grande hipocrisia buscar por mensagens globais, afinal, o que para mim é um belo refrão, para os outros pode não fazer sentido algum.

Caminho com essas mensagens; desenho, crio, escrevo inspirado por essas mensagens; vivo com essas mensagens. Pode soar estranho, eu sei, mas agradeço de qualquer forma. Hoje, ao escutar cada música e conseguir me emocionar, até chorar, tenho a certeza de que “Animal Instinct” despertou instintos de caça em mim.

Virei um caçador da própria felicidade.

Música: “Animal Instinct”, The cranberries (Dolores O’Riordan / Noel Hogan)

Álbum: Bury The Hatchet, 1999

De repente algo aconteceu comigo

(Suddenly something has happened to me)

Enquanto eu estava tomando minha xícara de chá

(As I was having my cup of tea)

De repente eu estava me sentindo deprimida

(Suddenly I was feeling depressed)

Eu estava completa e totalmente estressada

(I was utterly and totally stressed)

Você sabe que você me fez chorar?

Do you know you made me cry?)

Você sabe que você me fez morrer?

(Do you know you made me die?)

E o que me incomoda (o que me incomoda)

(And the thing that gets to me [thing that gets to me])

É que você nunca realmente vê (é que você nunca realmente vê)

(Is you’ll never really see [is you’ll never really see])

E o que me assusta (o que me assusta)

(And the thing that freaks me out [the thing that freaks me out])

É que eu sempre estarei em dúvida (sempre estarei em dívida)

(Is I’ll always be in doubt [always be in doubt])

O que temos é algo adorável

(It is a lovely thing that we have)

O que temos é algo…

(It is a lovely thing that we…)

O que nós temos é adorável

(It is a lovely thing)

O animal

(The animal)

O instinto animal

(The animal Instinct)

Então, segure as minhas mãos e venha comigo

(So take my hands and come with me)

Nós mudaremos a realidade

(We will change reality)

Então, segure as minhas mãos e vamos orar

(So take my hands and we will pray)

Eles não vão te levar embora

(They won’t take you away)

Eles nunca me farão chorar, não

(They will never make me cry, no)

Eles nunca me farão morrer!

(They will never make me die)

E o que me incomoda (o que me incomoda)

(And the thing that gets to me [thing that gets to me])

É que você nunca realmente vê (é que você nunca realmente vê)

(Is you’ll never really see [is you’ll never really see])

E o que me assusta (o que me assusta)

(And the thing that freaks me out [the thing that freaks me out])

É que eu sempre estarei em dúvida (sempre estarei em dívida)

(Is I’ll always be in doubt [always be in doubt])

O animal, o animal

(The animal, the animal)

O instinto animal em mim

(The animal instinct in me)

É o animal, o animal

(It’s the animal, the animal)

O instinto animal em mim

(The animal instinct in me)

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Written by Henggo

Escritor, Revisor & Ghostwriter. Coleciona trilhas sonoras e nome estranhos de pessoas enquanto espera a chegada dos ETs. Saiba mais em linktr.ee/Henggo

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