O MACHO HÉTERO ALFA E O TRÂNSITO: um estudo de percepção (Artigo)
Ao tomarem o veículo como armadura, muitos homens transformam o trânsito em um lugar de violência, desrespeito e estresse.
Um clássico das animações da Disney é o desenho onde o personagem Pateta interpreta um executivo que em casa é um doce, mas, quando entra no carro, se transforma em um monstro. Lançada em 30 de junho de 1950, dentro de um outro contexto histórico e social, a cena diverte pelo tom histriônico e absurdo ao vermos esse homem se descontrolar atrás do volante. Contudo, setenta anos depois, o retrato não só continua o mesmo como ganhou tonalidades ainda piores.
Eu moro em São Luís, capital do Maranhão, e dirijo há catorze anos. Esse fator é um dado importante, pois tenho orgulho de dizer que nessa mais de uma década de volante só tive quatro acidentes e nunca fui multado. Não, eu não faço o estilo “certinho”. O que eu aprendi ao longo de todo esse tempo foi a interiorizar uma regra fundamental: “não faça com os outros o que você não quer que façam com você”. O problema é que no trânsito toda essa responsabilidade bate de frente com a realidade. E as consequências são algumas dores de cabeça, estresse e muita concentração para não perder a paciência.
É está difícil. Cada vez mais difícil.
Algo que já notei em minhas andanças e observações (uma vantagem perceptiva trazida pelos ofícios de escritor e de jornalista) é como uma espécie peculiar se destaca nesse cenário: o “macho hétero alfa”. Sim, ele mesmo: aquele que cospe na rua, que “ajeita os bagos”, que só falta quebrar o pescoço quando passa uma mulher; aquele que fala gritando, que tem uma necessidade incontrolável de aumentar o volume do carro e cujo ideal de masculinidade é a santíssima trindade “cerveja, mulher e futebol”.
O “macho hétero alfa”, como muitos sabem (e como muitos não admitem!), tem a heterossexualidade frágil. É uma espécie curiosa, sabe? Vive em um temor constante diante da palavra “gay”, está no topo da cadeia alimentar, mas sempre se acha perseguido e julga-se na missão de reafirmar a própria sexualidade a todo o momento mesmo que ninguém lhe peça isso. Ele precisa ser visto, ele precisa ser ouvido e ele precisa ser amado, senão surta e começa a atacar Deus e o mundo. E, obviamente, quando está atrás do volante esses sentimentos ficam ainda mais aflorados — bem que “aflorado” é coisa de “viado”, então, esses sentimentos ficam ainda mais… expostos.
Você já percebeu como o carro é uma armadura tal qual a internet? Assim como acontece nas redes sociais, onde o fator do “anonimato” faz com que as pessoas digam impropérios e ataquem a todos, o carro exerce influência semelhante. É claro que o fator anonimato é prejudicado nessa vertente automotora, mas nada que um fumê mais escuro do que a lei permite não resolva, não é querido?
Então, cheio de carências, com o fardo de comprovar-se como hétero e munidos dos estresses impostos pela vida urbana (contas, chegar no horário, sustentar família, ganhar dinheiro, etc), o “macho hétero alfa” ganha as ruas.
Corramos para as montanhas!
Em primeiro lugar, eles têm um problema com linhas retas. A via pode três ou quatro faixas cada uma da largura de uma casa, não importa: ele dirige entre duas delas e atrapalha o trânsito. Afinal, é o MACHO HÉTERO ALFA! Ele precisa ocupar seu lugar de direito tão defendido pela sociedade e pela religião, não? E se enquanto estamos aqui falando surge um engarrafamento, não temas: ele vai buzinar até quebrar o volante, pois os carros têm de sair da frente dele porque apenas ele tem compromisso.
A fila de carros é dupla? Não se preocupe: ele vai formar uma terceira fila que só faz sentido na cabeça dele. E o melhor: o “macho hétero alfa” é tão sociável que ele atrai outras pessoas para o mesmo erro! É um case de sucesso da psicologia social.
E se você vir um “macho hétero alfa” com a namorada dentro do carro, aí é que as coisas pioram. Talvez por causa dos feromônios, talvez devido à excitação, ele enlouquece. Vai que aquela mulher ao lado dele tenha lá alguma dúvida de que ele não é “macho o suficiente”, né? Então, o melhor a fazer é dirigir feito louco para que a cópula seja garantida.
Tá com amigos dentro do carro? Vixe! Sai da frente. O “macho hétero alfa”, carente como só ele é, adora dirigir na companhia de grupos barulhentos. Janelas abertas, braços para fora, música alta, bebedeira e velocidade alta são a equação ideal. E se nesse percurso ele ainda puder “zoar” com alguns transeuntes, tomar gosto com algumas mulheres e burlar alguns sinais de trânsito, melhor ainda.
E ONDE ENTRA O CELULAR?
Se você pensa que as coisas não podem piorar, lembre-se de que existe uma coisinha vibrante chamada “celular”. Esse pequeno (ou não tão pequeno!) acessório é um mecanismo de sequest… de facilidades da vida moderna que nos permite ficar em contato mais direto com as pessoas, mais atualizados sobre a sociedade e mais informados sobre as notícias do mundo.
Ok, isso é o cenário ideal. Na prática, especialmente no trânsito, o celular tem se tornado o propulsor do caos.
O governo pode gastar milhões em campanhas educativas, os DETRANs podem intensificar as fiscalizações pelas ruas, as multas podem triplicar de valor… Já notaste como as pessoas não se cansam de usar o celular enquanto dirigem? Não adianta! E, sinceramente, é o tipo de atitude que eu não entendo, pois há algumas décadas vivíamos todos sem celulares e, veja só!, vivíamos! Não é engraçado?
A vantagem aqui para o “macho hétero alfa” é que (digam Aleluia!) ele não está sozinho nesse erro.
O celular se tornou algo generalizado e a quantidade de pessoas que vejo com o celular apoiado entre o ombro e orelha enquanto dirigem é algo assustador. Pessoas que mandam mensagens pelo WhatsApp, então, é uma imagem que está prestes a se tornar um lugar comum. Mais engraçado ainda é ver como as empresas automotivas parecem ignorar essa problemática.
Se você for ver os carros novos com seus sistemas multimídia, a maioria vem com aquele suporte de celular no painel do carro. É como se os esforços contra o uso do aparelho enquanto se dirige fossem relevados em prol de mais um acessório de fábrica para encher os olhos dos compradores. Troquei de carro recentemente e a primeira coisa que fiz foi retirar o suporte de celular.
Sejamos sensatos: se você não for UBER, taxista ou paramédico, não faz sentido algum andar com o celular ligado enquanto dirige. Além disso, um lembrete: aparelho exposto no painel é chamariz de ladrão. #ficaadica
DIRIGINDO COM SEGURANÇA
Fugir do trânsito é uma ação improvável. Seja como motorista, seja como passageiro ou pedestre, você faz parte desse processo. O que resta, portanto, é ter paciência, consciência e responsabilidade social.
Uma das questões fundamentais em toda essa brincadeira de “macho hétero alfa” é o modo como o excesso de coragem e de confiança podem ser péssimos aliados para o ato de dirigir. Sim, são bons sentimentos quando você está aprendendo a dirigir, pois te impulsionam a largar o medo. Contudo, o excesso desses sentimentos é o que afasta a sensação de perigo e impulsiona atos como rachas, pessoas passando em sinais vermelhos, altas velocidades nas rodovias e o próprio ato de usar o celular enquanto dirige.
Eu sempre falo que guardar um pouco de medo enquanto está no trânsito é um ato de autopreservação. Medo pela vida, medo financeiro diante de um acidente, medo de causar algo grave aos outros ou mesmo o medo pela reputação, não importa. É por causa dessa reserva de medo que, por exemplo, eu mantenho meus índices de multas zerado e a quantidade de acidentes restritas a quatro.
O medo é um freio para a empolgação proporcionada por essa armadura chamada carro.
Se essa atitude “macho hétero alfa” se mantivesse apenas nas redes sociais seria risível. Contudo, ela extrapola as telas e, historicamente, está na sociedade, no imaginário popular, nas mídias, nas religiões, na política. O combate a esse ideal de homem é uma atitude salvadora de vidas e, ao pensarmos na quantidade de pessoas que morrem no trânsito por causa de imprudências e de irresponsabilidades, essa certeza fica ainda mais evidente.
No entanto, resolver a educação no trânsito não resolverá as questões sociais, infelizmente. O trânsito é um reflexo de muitas de nossas dores e preconceitos e é preciso combater estes para tentar corrigir aqueles.
Mesmo assim, tenho certeza de uma coisa: por mais utópico que pareça, em uma futura sociedade onde um homem não precise ficar a todo o momento reafirmando a própria sexualidade veremos reflexo dessa leveza de personalidade também no trânsito.
E, certamente, muitas vidas serão salvas nas ruas e fora delas.