O som de correntes quebrando (ou Shade, Silverchair)
Sair das sombras, olhar-se no espelho, ter coragem de ser quem se é: ousadias que devem ser perseguidas.
NÃO SE ESCONDA NAS SOMBRAS! “Shade”, música da banda estadunidense Silverchair, conectou-se a mim atrelada às lembranças de um momento delicado: o bullying. Algo curioso é como muitas das minhas experiências da infância e da adolescência se perderam, mas essa ferida específica, cultivada e reaberta dia após dia da 5ª série (hoje 6º ano) até o 3º ano do Ensino Médio, esse ferimento nunca cicatrizou. De fato, tendo a pensar que feridas assim podem até criar uma crosta só para enganar, confortar, enquanto a verdade é que elas continuam a doer, relembrando, relembrando e relembrando…
Meus 19 anos já iam longe, eu estava em um período conturbado. Minha mãe de criação estava à beira da morte, moribunda devido a um agressivo câncer no intestino, havia meu descontentamento com o curso de Direito, minha autoestima estava para além do fundo do poço e ainda havia as típicas pressões familiares jogadas sobre uma pessoa dessa idade (trabalho, independência, namoro, sexualidade, etc.). Estava foda. Nesse turbilhão de eventos, a ideia de fazer o vestibular de novo (ainda não existia o ENEM) para cursar Jornalismo surgiu como uma resposta interessante à pergunta das minhas duas mães: “O que tu pretendes fazer da vida, Henrique?”
Sabe, eu cresci com estereótipos sobre os “bons” cursos, a dita “elite universitária” formada por Medicina, Direito e Engenharia, amém! Como se não bastasse terem incrustado isso na minha mente, durante a infância fui bombardeado por constantes (e imbecis) frases como “esse menino é muito caladão, tem jeito de juiz…”, “Direito é um curso que abre leques de oportunidade…”, ou ainda “quem cursa Direito, já sai com a vida ganha…”.
Como eu, revestido por estereótipos, iria virar para aqueles que fomentaram cada um desses pensamentos e dizer: “Quer saber: que se exploda! Vou fazer jornalismo!”. Sem chance.
Aí entra o segundo ponto: eu sempre soube que a escrita era algo natural para mim. Sem modéstia. Na escola, por exemplo, tenho recordações de reescrever os livros paradidáticos para que meus coleguinhas entendessem o texto com mais facilidade. E, quando minha timidez fora de controle resolvia dar uma trégua, eu também falava muito bem. Portanto, a Comunicação seria um caminho tão natural quanto a escrita. Contudo, havia uma cicatriz cunhada por palavras ditas durante os tempos de escola; por risos, palavrões, apelidos, escárnio; ameaças constantes, calções abaixados, tapas eventuais e cuspes no meu lanche, tudo isso apenas porque eu era quieto e vivia escrevendo, algo que parece passar a imagem de alguém “frágil” — qualidade que, em uma sociedade machista, ainda mais no início dos anos 2000, era um salvo-conduto para humilhações.
Dessa forma, eu era o “Tartaruga Sem Casco”, o “Feioso”, “Quasímodo”, “Burro das Notas Boas”. Os garotos (e algumas garotas também) desenhavam homens nus e punham na minha mochila, pintavam falos nos meus cadernos, faziam perguntas sobre meu corpo, me encurralavam no banheiro. Em outras palavras, no colégio particular de elite para onde fui na 5ª série, com muito esforço da minha mãe biológica, que trabalhava três turnos para me dar a melhor educação, a regra da escola era (com o perdão da palavra) “cagar em cima do dinheiro dos pais”. E, como eu era do time que não fazia isso, logo virei um idiota com um alvo na testa.
Assim, ao longo de sete anos de constante massacre (algo tão forte que prejudicou até minhas lembranças dos grandes amigos que tive nesse colégio), eu forjei um escudo de “lobo solitário independente” que, somado ao outros traumas externos à escola, me fez acreditar que aquilo — aquele tipo de gente — representava a maioria do mundo. Passei a não confiar em ninguém, temendo uma rasteira mais na frente, risinhos às minhas costas, agressões. Em resumo, eu me tornei aquele tipo de pessoa amedrontada, subserviente, disposta a fazer as coisas só para agradar; aquele tipo que ri do que não acha graça e faz o que odeia só para receber migalhas. Apaguei minha luz interior com medo de que essa luminosidade chamasse muita atenção, temendo me destacar na multidão.
Eu me joguei nas sombras, que se tornaram uma bolha aparentemente confortável quando, na verdade, era gélida, tóxica e depressiva.
Então, veio a morte da minha mãe de criação. É claro que eu já tinha visto outras pessoas morrerem, mas ninguém tão próximo, ali, deitada na cama dela, pesando uns 50 quilos, arquejando em busca de um ar que não chegava. “Babá”, como eu a chamava, tinha vários talentos. Era assistente social por formação, mas tinha habilidades tão diversas como desenhar a planta de uma casa, costurar roupas, gerenciar obras e organizar eventos. A vida, porém, a empurrou para o Serviço Social e ela aceitou. Ou melhor: penso que, como 99% das pessoas, ela se acostumou à estrada que lhe dava sustento e pagava as contas.
Era feliz, mas será que plenamente?
Nunca tive a oportunidade de perguntar, mas nos dias posteriores ao falecimento de Babá, correndo com burocracias post-mortem e testamento, lembro que uma questão martelava meu juízo: “se ela tivesse seguido os verdadeiros talentos, tivesse erguido a cabeça e ido adiante apesar das opiniões dos outros, será que não teria alcançado seus sonhos?”; “se tivesse fincado os pés e feito diferente, não teria uma vida mais plena?”. É, eu sei que é difícil responder, mas essas perguntas, após a morte dela, foram fundamentais para nortear as mudanças que promovi na minha vida.
Essas perguntas abriram uma fresta, um rasgo na minha bolha de sombras.
Não houve um momento imediato, épico, de redenção. Eu seria hipócrita se dissesse que houve. Porém, disso tenho certeza, minha mente mudou depois da morte dela. Perceba: não devido à morte, mas sim motivado pelas certezas que o término de uma vida causa na gente. Tanto é que foi só a partir desse momento que comecei a notar as várias mortes que eu tivera antes, como o estupro aos 10 anos, a tentativa de afogamento aos 13 anos e a parada cardíaca aos 17 anos.
A morte de Babá fez com que eu percebesse que eu tinha forças para superar tudo. Foi como se o destino me desse duas opções: ou eu rejeitava o feixe de luz que invadiu minha bolha e corria para me esconder entre as correntes escolares do bullying, ou eu alargava esse rasgo de uma vez e me puxava para fora.
Como Daniel Johns entoa em “Shade”, eu fiz alguma coisa, gritei, saí das sombras, não me escondi.
Se você está machucado
(If you’re hurt)
Por que não conta para alguém?
(Why don’t you tell someone?)
Não se sinta mal
(Don’t feel bad)
Você não é o único [nessa situação]
(You’re not the only one)
Se eu dissesse que foi fácil e que agora está tudo 100%, seria uma grande mentira. As cicatrizes permanecem e sei que, como escrevi no livro “Daniel Gandim e O Pomar do Sr. Petrus”, elas são “marcas da aventura da vida”. Algumas delas sumiram, outras criaram cascões, muitas continuam visíveis, ou transformaram-se em algo diferente. O fato é que, depois desse primeiro rompante, comecei a me desfazer das minhas correntes. Nos próximos artigos deste projeto #MemóriasMusicais esses pontos serão mais bem esmiuçados, mas, em resumo, eu fiz coisas que pareciam até ali impensáveis, como trocar Direito por Jornalismo, pedir demissão quando os empregos me anulavam, terminar um namoro quando a garota quis fazer chantagem emocional comigo; aprendi a dizer ‘não”, a “ligar o foda-se”, comecei a notar que, ei, até que gosto de mim aqui sob essa nova perspectiva, fora das sombras.
Minhas mãos doem, não é uma tarefa simples. Mas os calos ganhos, diferente das cicatrizes do bullying, são um símbolo de muitas vitórias; um símbolo da minha constante luta para deixar a escuridão.
Amigo e amiga, “Don’t go hiding \ Hiding, in the shade”, “Não vá se esconder \ Esconder-se nas sombras”. Não pelos outros, não por ninguém, nem por aplausos. Por você, apenas por você, fure essa bolha.
Nós conseguiremos.
Música: “Shade”, Silverchair (Daniel Johns / Ben Gillies)
Álbum: Frogstomp, 1995
Se você está machucado
If you’re hurt
Por que não conta para alguém?
Why don’t you tell someone
Não se sinta mal
Don’t feel bad
Você não é o único, sim
You’re not the only one, yeah
Não vá se esconder
Don’t go hiding
Se esconder nas sombras.
Hiding, in the shade
Se você foi abusado
If you were abused
Encontre alguém para te ajudar
Find someone to help you
Eu sei que você foi usado
I know you were used
O que você irá fazer?
What are you gonna’ do?
Sim…
Yeah
Não vá se esconder
Don’t go hiding
Esconder nas sombras
Hiding, in the shade
Não vá se esconder
Don’t go hiding
Esconder nas sombras
Hiding, in the shade