A GRAMA ESCUTA MUITOS DOS MEUS LAMENTOS, ABSORVE MEU PRANTO, AMACIA MEUS PÉS COMO SE ANSIASSE POR ME CONFORTAR. Às vezes, deitado nesta relva, eu me imagino distante, flutuante por entre rabiscos de nuvens, perdido no vazio do cosmos. Gosto do silêncio e é isso que a grama me dá: o silenciar da escuta que não encontro fora deste retângulo verdejante. Quantas vezes eu só queria um grama de um ombro onde eu pudesse vomitar minhas angústias ao invés de todo este gramado?
Mas alguém escuta nestes tempos de toneladas de pressa?
Contra a correria, este gramado me lembra da finitude. Com seu cheiro, alerta que um dia todos nós, após a partida, seremos terra, odor de virtude em um adeus de libertação. Há uma liberdade de vida na grama, algo que me causa inveja. Minhocas, formigas, besouros em seu viver ignorante das minhas cicatrizes. O verde atrai as borboletas e eu as invejo porque elas pousam aqui, mergulham nessa solidão enclausurada, mas não se detém: sabem que vivem pouco, precisam aproveitar todos os gramados que se estendem diante delas.
Às vezes, confesso, eu olho para a grama e tenho vontade de me deitar e ficar ali, quieto. Para não ter que escutar o trânsito, os vizinhos, os berros, as músicas altas; não precisar ser, fazer, acontecer e nem aparecer. Quieto na grama, dormir em paz sem as lembranças dos tapas, cuspes, piadas e xingamentos. Dormir e dormir até que a grama cresça e cubra os pensamentos que vez ou outra me acordam de madrugada.
E sendo gramínea, minhas lembranças iriam se esvair como os grãos desta terra, talvez até serem carregadas pelas formigas para as tocas do esquecimento, consumidas pelas minhocas para virarem adubo ao invés de dor. E enquanto eu fosse grama, não haveria um menininho estuprado dentro de um armário, nem um adolescente afogado por ser capaz de admirar a beleza de um outro menino; não haveria uma corda no pescoço e nem tantas cirurgias; nem quedas de escadas ou corpos trincados no asfalto.
Eu me ajoelho na grama e rezo para que a dor se cale. Suspiro cansaço no perfume de vida que exala do gramado, sorvendo e sorvendo, desesperado por viver sem precisar esconder. A grama não responde, mas escuta. Muitos ao meu redor para quem tento contar meus traumas não os escutam, mas sempre respondem. Cada palavra que me dizem, versam sobre esperanças que me parecem vazias. Cada folha que balança ao vento acena para o meu abismo em um pedido por mais paciência.
Quantas gramas de esperança e de paciência eu preciso consumir para não me sentir deslocado? Quanto preciso engolir para esquecer do que vivi?
Eu queria ser grama, que morre no tempo seco, amarela, apodrece e então, diante dos primeiros vestígios de chuva, renasce para uma vida de vicejo, em uma outra época, mais forte, mas sem esquecer de suas raízes. E vive e cresce e se espalha e causa encanto, ciente de seu passado, sem esquecê-lo. E quando o sol volta a impor castigo, ela hiberna no fundo da terra, fingindo-se de morta.
Talvez durma por não ter paciência de passar o ano inteiro aguentando as besteiras de nós, humanos.
A grama me dá a certeza de que tudo é passageiro; de que somos mais um bicho qualquer largado no gramado do universo. Já parou para pensar que talvez nós sejamos as minhocas do jardim de seres muito superiores que às vezes se ajoelham na grama, esmagando-nos, enquanto oram por dias melhores?
Quando chove e o gramado alaga, eu salvo as minhocas que saem das tocas. Encharcado, resgato uma por uma e as transfiro para vasos de plantas longe do alagamento. Faço isso na vida, faço isso nas redes sociais, faço isso há três décadas. Quando chove problemas, eu resgato as pessoas como um bom menino que sou; um super-herói das vidas alheias que chora sozinho no meio de um gramado.
Creio que há minhocas que, involuntariamente, ajudam as outras a saírem das tocas na hora do caos, empurrando-as para fora. E acabam morrendo por seu ato altruísta.
Eu me sinto assim no gramado da vida.
Isso cansa.
A obra Oração na grama pode ser vista junto à outras telas, escritos e ilustrações em https://linktr.ee/Henggo