Percepções sobre a morte no Dia da Morte

Exercício de escrita criativa durante uma visita ao Cemitério Municipal de Icatu.

Henggo
6 min readNov 2, 2024
Amanhecer no cemitério de Icatu. Arquivo pessoal.

CINCO DA MANHÃ, CEMITÉRIO MUNICIPAL DE ICATU, MARANHÃO, BRASIL. Cheiro de fumaça, gente bocejando, mato seco, flores ressecadas, acúmulo de morte. Uma mulher se acocora sobre a sepultura de um ente amado, lágrima escorre, terra recente, dor palpável. Homem de botina cava a terra com a serenidade digna dos coveiros, tira pedras, joga o barro, cava e cava, e continua. O que faz, afinal?

Pedras espalhadas, conversas aleatórias, nuvens cinzentas, mangue no horizonte, rostos sonolentos.

Velas acesas em meio ao caos da morte em Icatu. Há morte simbólica, morte palpável, feia, bonita, confusa, saudosa, rica, pobre; morte da morte do intuito de enaltecer a morte no dia da morte.

Mato alto, cano aparente, gente andando por cima das sepulturas, rachadura na mensagem, coroa de flores carcomida.

Mulher e homem se sentam enquanto dialogam saudades de quem já foi embora. Túmulos e túmulos, uns por cima dos outros, sem controle, limites, leis; simbolismo da desorganização, do abandono, descaso entre aqueles que tanto enaltecem O Morto Que Um Dia Venceu A Morte.

Ponto de caba no alto da capela, formigueiros, fogueira semi-apagada, grades quebradas, marcas de abandono.

“Ê, sió, ó a sua vela aqui!”, o homem cavador aponta ao encontrar velas alheias em seu túmulo. Cada um com seu morto, por favor! Tenha a santa paciência! Pai e filho caminham, carregam ferramentas, já fizeram seu trabalho funerário, voltam para casa. “Ô, Luiz”, o pai parou ao avistar o cavador, “tem sacola grande aqui, homem!”. O outro aceita a oferta, agradece, começa a colocar ali o mato arrancado. Trabalha com certa brutalidade, como se estar ali fosse o tipo de fardo do qual não se pode fugir.

Rosas misturadas aos cravos, litro vazio, grupo parado, sorrindo, fumaceiro, erva daninha.

Arquivo pessoal.

Tem um túmulo com azulejos azuis onde os parentes colocaram tantas velas que o espírito do morto deve estar em uma sauna. Ao lado desse, há um túmulo sem nada onde a morte já fez seu papel de apagar o passado. A morte tem dessas coisas… O casal sentado se entretém acendendo velas, ambos parecem perdidos, absortos, hipnotizados pelo brilho que bruxuleia da parafina. Mais acima, a capela contrasta com o sol que vem surgindo. A ausência da porta deixa um buraco escuro feito uma boca escancarada diante do que vê no cemitério.

Ladainhas de despedida, orações, terços, cânticos, bíblias folheadas.

Rogai por nós, pecadores, agora e na hora de nossa morte, amém.”, minha família reza. E vem o Pai-Nosso, o Credo e dá-lhe a Salve Rainha! Longe de onde estou, um senhorzinho solitário, bermuda-caqui, camisa polo azul, chapéu de palha, se agacha com dificuldade para arrumar a eterna morada de alguém. Diante do esforço que fez, creio ser uma pessoa bastante querida para ter a honra daquele gesto dolorido. “Tu soube que ela deu tanto nele que quase quebra a cabeça?”, fofoca uma senhora para a colega que reza diante dela. A outra sorri, faz o sinal da cruz e pergunta "como foi?". Prioridades, afinal. Talvez até o morto queria saber da fofoca. "Cumade, é mermo?" E toma-lhe falatório!

Garrafas sobre os túmulos, portão quebrado, muro caído, matagal crescendo, enxada.

Bom dia" é uma constante, alguns animados, outros bocejados. E óculos escuros, caixas de velas, sacolas com flores de plástico que demoram mais a morrer. Sem choro. Há conforto, resignação, mas também indiferença e obrigação. A fumaça das velas escala os muros das casas vizinhas ao cemitério, abrindo os braços para exalar seus feromônios por todo lugar. O homem cavador agora limpa cada filigrana de grama, talvez para compensar a ausência nos outros 364 dias do ano.

Coroas de flores sobre as cruzes, mais flores carcomidas, ramagens artificiais, galhos quebrados, lixo espalhado.

Arquivo pessoal.

Um cachorro caramelo perambula entre a morte, tão magro que talvez tenha vindo sentir o odor do que lhe espera em breve. É bom se acostumar ao inevitável. O senhor de boné vermelho terminou e agora caminha para fora. Ao passar pelo túmulo onde estou sentado, me cumprimenta com o olhar, sendo devidamente retribuído. A morte aproxima. Após a leitura de uma passagem da Bíblia, meus familiares devaneiam sobre a finitude da vida. Enquanto isso, a família reunida no túmulo vizinho gargalha de uma piada. Há uma madame toda de branco sentada debaixo de uma árvore que estaria facilmente em um conto de terror.

Pétalas brancas voando, borboleta pousa em uma caixa de vela, rapazola com olhar de sono empurra carrinho de mão, alguém pergunta sobre a bolsa, motos chegam.

O sol se derrama sobre os túmulos, joga esperança sobre um mundo onde ela foi esquecida. Rádio toca reggae, música misturada aos cantos dos meus familiares. Ao invés do clássico "Segura na mão de Deus", optaram por algo diferente. Homem de camisa bege coça o saco e olha para o túmulo sob seus pés. "Vamos fazer mais duas gavetas?", minha tia pergunta, analisando o jazigo da família. Já pensam no futuro, afinal, é o único investimento certeiro que temos na vida, não? "Bora parar de falar sobre isso, senão eles vão pensar que estamos querendo ir logo!", minha mãe brinca.

Azulejos quebrados, túmulo sumido debaixo do mato, gato no muro, pedaço de papel queimado, revoada de pássaros.

A manhã toma conta da cidade. A fumaça já é tanta que cobre os telhados e, provavelmente, invade os quartos dos vizinhos que ainda dormem. Sim, a morte incomoda. Sem nomes, placas, nada, os túmulos são um emaranhado de formas sem vida. Ali perto, alguém não teve paciência de acender as velas com delicadeza e tocou logo fogo na caixa inteira, foda-se! Na parte de trás do cemitério, morte, esquecimento e abandono são uma constante. Visitamos túmulos sem identificação. "Essa aqui é fulana de tal…", comentam comigo. Bom, só me resta acreditar, né? Talvez seja beltrano ou ciclano, quem sabe? Eles rezam. Uma senhora de olhar duro me encara, braços cruzados. Uma assombração? Não, apenas alguém com sono demais e sem energia até para desviar o olhar. Quando passamos, ela permanece na mesma posição, o olhar ainda perdido. Talvez tenha morrido ali, em pé sobre o túmulo dos parentes. Seria poético.

Imagem de Nossa Senhora de Lourdes, chinelo esquecido, cera misturada à areia, vento tentando apagar as velas, velas disputando o farol.

Arquivo pessoal.

Vamos saindo, chega disso. Percebo que, finalmente, alguém se dignou a levar flores naturais para colocar em uma das sepulturas. "Hum, vão roubar daqui a pouco!", meu primo constata assim que nota o meu olhar. Há roubo na morte e morte no roubo. Roubam velas, flores, plantas, tudo. "Se não tomar cuidado, roubam até o túmulo!", minha tia explica. O homem cavador terminou seu serviço, pegou a sacola com lixo e jogou na calçada. Pergunta a outro se vão para a festa na Prata. Saímos de volta à vida banal dos viventes na banalidade de existir.

Seis horas da manhã, som de motor, Cazuza no rádio, sorrisos, sacolas vazias, conversas diversas.

Já fizemos nosso papel. Agora, só ano que vem. Temos muito o que fazer. Adeus, querida. Adeus, querido. Foi bom enquanto durou.

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Written by Henggo

Escritor, Revisor & Ghostwriter. Coleciona trilhas sonoras e nome estranhos de pessoas enquanto espera a chegada dos ETs. Saiba mais em linktr.ee/Henggo

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