Quando fui atropelado por bruxos
Um dia no cinema, crianças vestidas de bruxos e um garoto tímido.
AH, A TIMIDEZ… Hoje em dia, eu acredito, é mais “fácil” para alguém muito tímido interagir com o mundo: redes sociais, o conforto de casa, a “proteção” do anonimato, tudo contribui para a comunicação (apesar de também alimentar certo isolamento). Contudo, lá no começo dos anos 2000, o máximo da interação virtual era o velho MSN, as salas de bate-papo virtual ou o finado Orkut — e apenas pelo computador, viu? Nada de troca de mensagens via celular, aplicativos ou WhatsApp e Telegram. Smartphones e tablets? Nem sonhávamos com tamanha tecnologia.
Em outras palavras, as redes de amigos eram bem menores e a possibilidade de interagir com pessoas que não fossem daquele círculo de amizade (no meu caso, a escola) era bem menor. Portanto, aos meus 16 anos, tímido, temeroso de sair sozinho para os lugares, eu tinha uma espécie de dependência do meu grupo. Isso até aquele início de junho de 2004, quando uma notícia pôs minha timidez em xeque: a estreia do terceiro filme da série Harry Potter, o Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban.
Enlouqueci, é claro!
Eu havia sido um dos primeiros da minha escola a ter o primeiro livro da série (Harry Potter e a Pedra Filosofal, 1997). Aquele personagem com uma cicatriz na testa, cabelo desgrenhado e excluído da sociedade me encantara nos primeiros parágrafos.
Eu precisava ir ao cinema.
Acima disso, eu precisava ir na estreia.
Primeiro, recorri à família. Ninguém se predispôs a ir comigo naquele dia porque o cinema estaria lotado. Dei de ombros e recorri ao meu grupo de amigos. Ninguém se predispôs a ir comigo naquele dia porque erámos todos um bando de adolescentes sem dinheiro.
Mas nem tudo estava perdido.
Eu tinha parte da minha mesada guardada para “emergências” (não me pergunte qual seria o conceito de emergência para um adolescente de 16 anos!). Usá-la para ir ao cinema não seria crime algum, não é?! O meu problema era outro: eu nunca, jamais, em hipótese alguma, havia ido ao cinema (ou ao shopping ou ao parque ou ao teatro ou a alguma festa) sozinho.
Passei dias me digladiando com essa questão até decidir respirar fundo e deixar rolar. Na quinta-feira anterior à estreia, pedi para um colega cuja irmã trabalhava no shopping comprar o ingresso e rezei.
Então, na sexta-feira após a escola, lá estava eu: farda de educação física surrada, rosto suado devido a correria de chegar logo, mochila nas costas, cabelo tão desgrenhado quando o do Harry, estômago vazio, andar vacilante. Eu era a imagem da desolação. Acho até que eu estava verde ou azul de fome…
Um dos “problemas” de certos shoppings mais elitizados aqui de São Luís é que seus frequentadores costumam olhar para as pessoas “fora de padrão” com desdém (como se elas não tivessem posto uma roupa bonita só para estarem ali e se fingirem de superiores, quando em casa andam de chinelas Havainas e cueca furada). É claro, eu virei um chamariz de atenção naquele dia. E isso se intensificou quando eu me vi sozinho em frente à catraca de entrada do cinema, pois, sem calcular o tempo direito, eu cheguei duas horas antes da sessão de estreia.
Fiquei lá de cara para cima, atração de circo, quando, para o meu alívio e desespero, começaram a chegar outras pessoas. Mas não eram “só” outras pessoas: era como se caravanas tivessem saído de todo o Maranhão para estarem ali naquele cinema.
As portas do inferno estavam abertas.
De repente, eu me vi empurrado, cutucado, esmagado, envergonhado, acuado, cuspido, xingado, observado, abraçado, usado como apoio, feito de diário por uma louca que não parava de tagarelar sobre o ex-namorado…
Naquela época eu odiava free talkers, sabe? Pessoas que você não conhece e do nada chegam perto de ti, perguntam as horas e, minutos depois, já estão falando intimidades sobre a própria vida e mostrando as fotos dos filhos.
Aquela menina estava me enlouquecendo com suas mazelas sobre a vida amorosa.
Minha mente estava à mil. Pensei mesmo em desistir, sabe? Trocar o ingresso e voltar outro dia. E foi então que o destino fez com que eles chegassem: um grupo de crianças vestidas de bruxos, com chapéus pontiagudos e vassouras de brinquedo. A gangue fez tanto barulho que a garota ao meu lado foi obrigada a calar a boca e eu fiquei mais tranquilo, apesar de agora estar surdo.
Depois de presenciar mais confusão, o aumento daquele calor de vulcão e os funcionários do cinema loucos com tanta criança, a multidão começou uma contagem regressiva quando deu a hora de entrar na sala de exibição. Aprumei meu corpo, verifiquei os documentos para apresentar ao atendente e olhei para as pessoas atrás de mim com ar superior.
“Sou o primeiro da fila! Rá! Quem é o melhor agora?”, pensei.
TRÊS!
O funcionário se aproximou da catraca.
DOIS!
Ele levou a mão até o botão de liberação.
UM!
Abriu…
Sabe aquelas imagens das lojas durante a Black Friday, com centenas de pessoas correndo como se o apocalipse tivesse chegado? Manada de bois famintos solta no pasto? Pois então: pegue essa mesma quantidade de gente com a mesma energia e ponha todas para passar pelo espaço de uma catraca de mais ou menos um metro. É como pegar 20 quilos de massa de cimento e tentar passar por um funil da largura do seu dedo mindinho.
E, é óbvio, como eu era primeiro da fila, quem ficou com a pior parte?
Pois bem, eu corri. Corri feito um desgraçado. Nem lembro se mostrei o ingresso pro funcionário. Dez, vinte, trinta pessoas passaram na minha frente e lá fui eu, com aquela mochila pesada dos diabos, apertar o passo e disparar por aquele corredor para garantir sei lá o que, a manutenção da minha dignidade, talvez? E adivinha?
Eu caí.
Ah, mas eu caí bonito no meio do saguão do cinema!
Minha mochila deve ter voado uns dois metros e quando me pus a rastejar pelo campo de guerra para recuperá-la, a horda chegou. Só tive tempo de ver aquele mar de capas pretas e vassourinhas de plástico vindo na minha direção e rezar para meu rosto não ficar desfigurado para o velório.
Passaram por cima de mim, chutaram a mochila, gritaram, espernearam, fui enfeitiçado e varrido. Ao final de tudo, um dos demônios… quer dizer, umas das crianças ainda virou e disse:
“Desculpa aí, a gente não te viu, moço!”.
Quando arrumava minha mochila, surpreendi-me com a atitude da menina tagarela da fila que se predispôs a me ajudar e (tagarelando, é claro!) fomos juntos para a sala de cinema. No final das contas, nem eu e nem ela assistimos ao filme (entendedores entenderão!).
Entre a timidez e uma horda de bruxinhos, sobreviveu um garoto mais consciente de si mesmo. Alguém que conseguiu superar parte da timidez.
Um garoto atropelado, mas feliz.