Querem que eu sorria

O cansaço de ser a todo momento chamado a sorrir por pessoas que não sabem sorrir primeiro para elas mesmas

Henggo
3 min readAug 24, 2023

AS PESSOAS QUEREM QUE EU SORRIA. Sempre. A todo o momento. Irrita. Muitos ao meu redor tem a estranha mania de sorrir diante de algo que consideram engraçado e, ao invés de se deliciarem com o sentimento, olham para mim para verem se eu também sorrio. Eu não sorrio. Posso achar o assunto igualmente engraçado, digno de gargalhadas, mas me obrigo a um sereno sepulcral.

Não gosto de alimentar carências.

Por que as pessoas não podem sorrir e pronto? Por que a mania de precisar de aprovação alheia? É como se, ao olharem para mim, questionassem se “o que acho engraçado é DE FATO engraçado”? Às vezes, sim, eu finjo. Às vezes, sorrio de verdade. Mas, isso eu garanto, raramente retribuo o olhar de quem exige meu sorriso. E essa é uma lembrança que tenho desde criança.

Quando pequeno, eu sentia que havia algo de estranho quando um coleguinha sorria de algo (ou de alguém) e queria minha cumplicidade. Eu nunca fui muito bom em traquejos sociais. Tanto é que passei anos na crença de que eu tinha algum grau de autismo. Até ir a uma psicóloga e descobrir que não, eu sou neurotípico, apenas pouco propenso a certas amarras sociais. Foi libertador escutar isso de uma profissional. A sociedade exige padrões, gosta de estereótipos apesar de dizer o contrário. Mentira. Sabe a história de “o prego que se destaca é o que mais leva martelada”? Minha cabeça é dura de tanta pancada. É foda. E cansativo.

Eu quero rir de conversas, dos perrengues, das rodas da vida; dos sonhos bobos e das lembranças da estrada do tempo

Confesso que às vezes eu me sinto como se estivesse na beira do oceano, com um rodo nas mãos, tentando conter as ondas. É idiotice. Pura idiotice.

E veja que hoje em dia eu aprendi a ser diplomático, uma qualidade que só se adquire com a prática chamada vida. Mesmo assim, a incapacidade de me mascarar, a falta de jeito aparente quando tento fingir sentir o que não sinto, sorrir o que não flui no meu riso, tudo fica explícito no meu rosto. É nesse ponto que eu levo um carimbo de “antissocial” na testa. Sinceramente, ser a sociabilidade pressupõe falsidade, eu prefiro ser o estranho mesmo.

Muitas pessoas se esquecem de que a verdade, a veracidade dos fatos acima das narrativas, é algo que pressupõe quebras, dores e cicatrizes. Você ter a coragem de dizer “não quero”, “não aceito” ou “não vou” é um movimento de esforço digno de uma hecatombe nuclear. É terra arrasada: a bomba-verdade destrói, fere e mata amizades. Mas eu garanto: o que nasce das cinzas dessa explosão é algo muito mais firme, mais autêntico e, principalmente, mais respeitoso.

Eu quero rir de conversas, dos perrengues, das rodas da vida; dos sonhos bobos e das lembranças da estrada do tempo; rir de chorar, de saudade, gargalhar até sentir vontade de abraçar aquela pessoa e dizer “obrigado por estar comigo”; sorrir de verdade, por dias, sem depender de uma tela, sem que o fim desse momento pressuponha o retorno dos olhos em busca de outros vídeos. Eu quero ter um afluxo de risos, e então silenciar e degustar o riso que compartilhamos, o sabor da conexão, notas de cumplicidade que duram mais do que trinta segundos.

Por favor, você pode fazer isso?

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Written by Henggo

Escritor, Revisor & Ghostwriter. Coleciona trilhas sonoras e nome estranhos de pessoas enquanto espera a chegada dos ETs. Saiba mais em linktr.ee/Henggo

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