Raízes que enraízam (ou “Santiago” de Loreena McKennitt)
O #MemóriasMusicais desta sexta-feira analisa o poder de uma canção que foge do óbvio e evoca sentimentos profundos.
POR QUE GOSTAMOS DE CERTAS MÚSICAS? Essa é uma pergunta que por vezes eu me faço ao pensar em certas canções que costumo escutar. Já mencionei nestes artigos uma das canções mais peculiaridades da minha coleção (“Urga” de Badema) — mas essa, pelo menos, tem uma letra que traz uma mensagem e, portanto, justificaria o despertar do meu interesse. Há outras músicas que são parte de trilhas sonoras, obras instrumentais atreladas a um contexto específico. E ainda há aquelas músicas que são versões instrumentais de canções já conhecidas, facilitando a identificação. Contudo, há certos tipos de peças que parecem não se encaixar em nenhum desses contextos. Pelo contrário, são munidas de um caráter cultural específico a uma época, um povo ou a um país, o que, em teoria, dificultaria a imersão. É o caso aqui.
A Universidade Federal do Maranhão tem seu principal campus localizado na área Itaqui-Bacanga aqui em São Luís. Ainda que seja próxima ao centro comercial da capital, a UFMA carece de um sistema de transporte melhor, algo que dificulta o acesso dos estudantes e pressupõe que aqueles que tenham veículo próprio deem carona aos colegas — o que era o meu caso. É nesse contexto que, enfrentando os longos engarrafamentos da ilha, meus colegas eram obrigados a imergir no meu gosto musical, situação que gerava piadinhas, estranhezas e vários questionamentos.
É difícil aceitar algo que parece muito distante de nós. No caso de músicas, quando a pessoa está acostumada (talvez até condicionada) ao que a mídia, as redes sociais, os serviços de streaming dizem ser “as melhores canções”, fica difícil absorver sons que parecem muito diferentes do é considerado “normal”. Quando uma dessas canções, então, é cheia de murmúrios, batuques, violinos, arpas; não possui letra, tem uma animação que lembra um ritual tribal e ainda é tocada por uma artista com raízes celtas, pouco conhecida do grande público, a compreensão fica difícil.
Muitas pessoas vivem com pedras nas mãos, sempre prontas a atirar em qualquer coisa que desvie do lugar-comum. É o tipo de atitude que acho triste porque impede a experimentação de novidades, a assimilação de outras culturas, o abrir de mentes. Um exemplo disso foram as críticas e toda sorte de comentários que escutei diante de “Santiago”, música da canadense Loreena McKennitt.
“Gente, que coisa é essa? Virou macumba, foi?” Essa frase ficou marcada em minha mente em uma das caronas que dei a alguns colegas. Não posso dizer que foi especificamente em relação a essa música, porém, diante do que eu já vivenciava, a probabilidade é alta.
As pessoas carecem de escuta ativa, a capacidade de silenciar, absorver o que se escuta, entender, refletir e aí, sim, emitir uma opinião. É assim com as pessoas, é assim na internet, é assim com uma simples música. Quando “Santiago” soava, instantaneamente se abria um leque de comentários, em sua maioria para questionar meu gosto musical. Chegaram até a alegar que eu precisava “escutar música de verdade” e “parar de ser tão colonizado”. Quanta, quanta bobagem…
Costumo dizer que se o mundo tem 8,5 bilhões de pessoas, são 8,5 bilhões de gostos, jeitos e formas diferentes de ver o mundo. Diante disso, pensando nas questões musicais, são milhões de possibilidades; milhões de trampolins para mergulhar nas poesias que florescem de tantas cabeças. Então, por que não abrir a mente? Nadar para além do óbvio? Permitir-se vivenciar outras culturas? Viajar nas melodias de uma simples canção?
Toda vez que ouço “Santiago”, sinto como se um machado golpeasse a minha cabeça. E a cada golpe, mais aumenta a convicção de que amo essa música e tudo o que ela me proporciona.
É difícil dizer, afinal, o que tanto me encanta aqui. O ritmo? Sem dúvida. A animação? Claro que sim. A voz de Loreena, a miríade de instrumentos, os picos da música? Sim. Porém, tem um “algo a mais”, um suspiro, uma eletricidade, energia, explosão, empolgação. Há uma conexão com alguma coisa ancestral, mística, “transcendental”, talvez; algo antigo, etéreo, misterioso, acima de nossa “mundanidade”. Não divino, longe disso. Falando aqui como um leigo em tecnicidades musicais, essa música soa para mim como sendo de uma simplicidade aconchegante. É peculiar como reconheço “Santiago” já nos primeiros segundos, independente de qual versão toque, e logo percorro estradas mentais que me levam a esse lugar de conexão.
Minha avó, Firmina Gomes, sempre falava comigo sobre nossas “raízes”, sobre a necessidade de saber de onde se vem, onde estamos “fincados”, qual o nosso “caminho de plantio desde os tempos antigos”. Sendo de uma comunidade quilombola, descendente de escravos, vivenciando o apagamento da nossa história preta, compreender os meandros de nossas raízes foi e é questão de sobrevivência e de empoderamento. Crescer escutando isso fez com que eu me acostumasse a fazer esses mergulhos em praticamente tudo a fim de entender o que está ao meu redor.
É assim que eu, imerso no encantamento por “Santiago”, fui entender as raízes que fizeram Loreena McKennitt compor algo tão diferente. Nesse percurso, descobri mais sobre essa artista multi-instrumentalista que pesquisa sobre várias culturas, bebe de tantas fontes — contemporâneas ou não — e que transformou sua carreira em uma espécie de repositório cultural. Assim, quando ela aporta na época medieval, mais especificamente nas chamadas “Cantigas de Santa Maria”, floresce “Santiago”, uma releitura da música tradicional “Non é gran cousa”.
Há uma dubiedade se essas músicas foram compostas todas por D. Afonso X, rei de Leão e Castela, ou se foram escritas pelo poeta trovador Airas Nunes. Aparte essa discussão, o fato é que as “Cantigas de Santa Maria” são um conjunto de mais de quatrocentos hinos e canções em galego-português que enaltecem feitos e milagres de Nossa Senhora. No caso de “Non è gran cousa”, a curiosidade é que este hino é baseado em um causo do século XII conhecido como “milagre da mutilação do pênis”.
A estudiosa italiana Cattia Salto, em artigo no blog “Terre Celtiche”, explica que “Non è Gran Cousa (em português “Não é preciso muito”) narra a história de um peregrino muito fiel enganado pelo diabo, sedento por fazê-lo pecar. Assim, o homem comete um pecado antes de partir para a cidade de Santiago, porém, “esquece” de confessá-lo: teve relações sexuais com uma mulher que não era sua esposa. O diabo, então, prossegue em suas manipulações e aparece para o peregrino disfarçado de São Tiago para lhe oferecer a “salvação”. Para isso, bastaria o homem primeiro cortar o pênis com o qual pecou e depois a garganta. Por mais piedoso e devoto que fosse, o peregrino estava com medo de acabar no inferno. Assim, opta por salvar sua alma e obedece aos comandos do tinhoso. Após a mutilação, os demônios correm para levar a alma do coitado para o Inferno, jubilosos do feito de terem conquistado uma vítima tão devota. Contudo, no caminho para o fogo eterno, eles sobrevoam a igreja de São Pedro e encontram o verdadeiro São Tiago. O santo arrebata a alma do peregrino das mãos dos malignos e, diante da complexidade do caso, decide que a questão deveria ficar a critério de Nossa Senhora. Após versos e versos de conjecturas, Maria decide devolver a alma ao corpo do homem e restituir seu órgão.
É enraizada nesse hino secular que Loreena McKennitt adaptou a cantiga e fez brotar a misticidade e a narrativa de “Santiago”.
Enquanto escrevia este artigo, comecei a refletir sobre a curva de amadurecimento dessa música. Como se fosse uma trilha sonora para um curta-metragem sobre o “milagre da mutilação do pênis”, a canção começa tranquila como se fosse a aparição de Nossa Senhora após o chamado de São Tiago e logo cresce, explode, trazendo um tom dramático diante da dúvida perante os pecados do peregrino. Há tensão, comédia, expectativa, mistério, serenidade, urgência, arrebatamento, esperança, tudo em menos de 6 minutos, regidos pelo cantarolar de McKennitt tal qual uma trovadora em um púlpito no meio de uma praça.
Comecei este artigo questionando o porquê de gostarmos de certas músicas. E agora, termino não exatamente com uma resposta definitiva, mas com uma conclusão que me tranquiliza: gostamos de certas músicas porque elas abraçam nossas convicções e despertam sentimentos que regem nosso caráter. “Santiago” me faz querer dançar, cantar, mexer a cabeça, acompanhar o ritmo, pois se embrenha nas raízes de quem eu sou. “Gente, que coisa é essa?”, perguntaram-me. E eu digo:
“Santiago” é o meu lugar de conexão com as memórias de um passado que não vivi, mas que resiste dentro de mim.
Música: Santiago, Loreena McKennitt (Tradicional)
Álbum: The Mask and Mirror (1994)