MUITAS PESSOAS PENSAM NÃO SEREM HOMOFÓBICAS SÓ POR GOSTAREM DE LIVROS COM ROMANCE GAY E LÉSBICOS (OS FAMOSOS ROMANCES SÁFICOS). O que mais vejo internet afora são pessoas que usam desse gosto como anteparo a qualquer crítica sobre preconceito. Porém, o que muitos não percebem são as nuances que existem por trás dessa pretensa “qualidade”. A pergunta que fica é: até que ponto gostar de algo na ficção significa replicar tal gosto na realidade, no dia a dia?
Há alguns anos conheci uma escritora maranhense do Wattpad que amava ler e escrever fanfics baseadas nos cantores que gostava. Em todos os livros e contos dela havia tórridas descobertas sexuais entre integrantes de bandas, cantores de rock se amavam nos bastidores da fama, fãs eram convidados para a casa (e a cama) dos seus ídolos. Veja: não que isso não aconteça. Como sempre reitero, a sociedade é uma grande farsa. Tudo é máscara. O ponto em que bato é que essa escritora fazia questão de usar essa escrita como forma de se autoproclamar “livre de preconceitos”. Nos grupos do Facebook e do Discord, por exemplo, ela sempre se colocava como símbolo da defesa LGBTQIA+. Isso até a virada de página.
Em um Clube do Livro aqui em São Luís, ela compareceu e levou o filho junto, um garoto de uns 10 anos. Estávamos no mezanino de uma livraria em um shopping, com ampla visão para toda a área da loja. Até que lá pelo meio da tarde, um casal de dois homens entrou na livraria. Muito distantes do “padrão Instagram de beleza”, os rapazes circulavam de mãos dadas, sorriam um para o outro, conversavam. E foi nesse ponto que notei a escritora supracitada pedir para o garoto parar de olhar e mudar de lugar. “Ok”, pensei, “é mesmo incômodo você estar com o namorado e ter alguém olhando”. Contudo, ela permaneceu de olho no casal, com uma expressão serena. E de fato, quando descemos, a vi empurrar o filho para bem longe dos dois homens.
É claro que eu seria hipócrita se tomasse uma atitude individual como representação social geral. Mesmo assim, aquela escritora e sua reação refletem bastante o que vejo principalmente no Wattpad, onde estou há 13 anos.
Nos livros gays e sáficos muitas autoras e autores repercutem estereótipos sem perceber. Se você pegar um desses livros para ler, são grandes as chances de se deparar com pessoas brancas, padrão europeu, olhos claros, corpos “sarados”. Mesmo quando as pessoas tentam incluir alguma diversidade, voltam-se apenas para a questão racial e incluem um ou outro personagem negro — mas desde que tenham traços mais “finos”, se é que você me entende…
O “feio” é feio mesmo ou é teu preconceito internalizado que cria uma tela por trás da qual você enxerga (e julga) as pessoas?
Quando busco por livros de romance sáfico e gay no Kindle e no Wattpad (e mesmo nas livrarias físicas) eu sempre me pergunto: onde está de fato a realidade? Onde estão as pessoas gordas? E as idosas? PCDs? Os gays para além do estereótipo “gay-jovem de classe média”? E as lésbicas mais masculinizadas? Você já viu algum romance tratar travestis para além do que a sociedade julga? Para qual lugar foram as pessoas pretas retintas, com problemas de labuta e cuja questão sexual é mera vírgula diante dessa coisa chamada vida? Percebe as camadas do problema?
E é aqui que retomo a pergunta que intitula este artigo: você de fato não tem preconceitos? Ou será que, ao imergir em um “romance bonitinho” de dois homens “lindos e jovens”, você pensa que fazer essa leitura já é suficiente para te livrar da sina do preconceito?
Em um antigo grupo de escritores no Facebook, certa vez uma garota quase me enviou uma carta-bomba por causa disso. Quando questionei o motivo de ela, uma garota lésbica negra, só retratar personagens brancas, loiras e que moravam em outros países, ela ficou bem irritada. Até hoje lembro da frase em letras gigantescas “EU JÁ SOU LÉSBICA! É ÓBVIO QUE NÃO TENHO PRECONCEITOS!”. Será? Você que é LGBTQIA+, você se retrata nos teus livros? Ou você traz personagens distantes da tua realidade, entrando naquela premissa de que os livros “são uma oportunidade de fantasiar”?
“Ai, mas ninguém quer ler sobre gente feia!”, certa vez um menino do Wattpad justificou.
O “feio” é feio mesmo ou é teu preconceito internalizado que cria uma tela por trás da qual você enxerga (e julga) as pessoas?
Artistas, cantores, atrizes, atores, criadores de conteúdo, tik tokers, influencers são categorias que vivem de aparência. Na frente das câmeras essas pessoas são sempre “mais”: bonitas, legais, felizes, ricas. Veja: não é uma mentira, é uma farsa, um mascaramento da realidade. Não é à toa que há um índice de depressão crescente em quem usa redes sociais porque os seguidores veem vidas “ideais” que nunca alcançarão. Diante disso, quando uma pessoa cheia de preconceitos internalizados toma um desses artistas como personagens de uma fan fic LGBTQIA+, são grandes as chances de que ela, sem querer, coloque mais tijolos nos muros sociais que nos dividem.
Como melhorar isso?
Faça o que a escritora Djamila Ribeiro cunhou como “teste do pescoço”. Olhe ao redor. Saia da bolha. Permita-se o incômodo. Mergulhe na sociedade. Sente-se em uma praça de alimentação de um shopping, por exemplo, e perceba a seara de personalidades e corpos que existem. Puxe isso para o teu livro. Molde personagens mais vivos, mais palpáveis, que criam uma empatia imediata com o público.
No Wattpad há uma função de cast, elenco, onde os escritores podem colocar fotos de artistas que representam cada personagem. Acho engraçado que alguns autores usam isso para dar mais “visibilidade e diversidade” às suas histórias, mas colocam no elenco fotos de atrizes e atores da Rede Globo, ou de modelos de passarelas de marcas famosas. Aí, pegam uma ou outra artista “mais cheinha”, uns três modelos negros “com rostos mais delicados”, um gay “que parece hétero” e outro “mais espevitado” para dar leveza ao livro.
Sim, essas pessoas existem na vida real. Mas faço uma pergunta: o que a novela das nove da Rede Globo mostra representa o que você vê nas ruas? Uma novela, um produto comercial, que é lapidada e censurada para agradar a muitas pessoas, será mesmo um bom “espelho da sociedade”, como costumam dizer?
Sério, você se enxerga nesse espelho?
Sim, esse é um assunto chato. Talvez, polêmico. Porque exige que você saia da bolha, um movimento que, apesar de belo, pode ser muito doloroso. Sair da bolha significa olhar para aquele lado feio da sociedade, descobrir-se preconceituosa, preconceituoso, enxergar humanidade naqueles que a sociedade ensinou que são “inferiores”. Porém, é necessário fazer isso se você quiser ir para além do óbvio, escrever algo que fuja do lugar-comum esperado pela maioria. E sim, você perderá leitores e receberá pedradas (experiência própria). Mas quer saber: faça.
Quando uma pessoa de fora do “padrão Instagram” te enviar uma mensagem dizendo que o teu livro a abraçou em um lugar onde nenhum outro conseguiu, você saberá que fez a coisa certa.
Escreva.