“Saltburn” e o choque de uma sociedade apática

Feito sob medida para chocar a sociedade que é satirizada pelo próprio filme, "Saltburn" é um espelho agridoce de quem somos.

Henggo
5 min readJan 18, 2024
“Saltburn” (Divulgação Amazon)

ESTOU DE SACO CHEIO DE FILMES QUE BUSCAM CAUSAR FRISSON EM UM PÚBLICO CADA VEZ MAIS SENSÍVEL E EM CHOQUE COM IDIOTICES. Essa classificação +18 é uma piada, por favor. Se você tem problemas com menstruação, com homens mostrando a bunda e o pinto, e com cenas simuladas (não explícitas) de sexo, acho que você deve pensar se não anda sensível demais pelas coisas erradas. Por favor, ligue nos jornais. A realidade é chocante, não isso aqui.

Há sete mil crianças mortas em Gaza e você se diz “em choque” por causa de um pinto? Sério?

Se você me disser que sim, então, você está mais fora da realidade do que as pessoas que são retratadas neste filme. E creio que nesse sentido, provocação e sátira, o filme funciona. Porém, e isso eu confesso que não sei traduzir em palavras certeiras, eu senti que há algo vazio aqui. Falta um viço, entende?; algo que de fato me choque. Me prometeram um filme “+18 chocante”. Onde ele está?

Barry Keoghan na ‘’polêmica’’ cena da banheira

Eu li muito sobre a “chocante cena da banheira”. Sério? A “chocante cena final”. Qual? E a “outra cena da banheira”. (olhos revirando). E “Ó, meu Deus, a apatia das pessoas diante do horror que acontece nessa família” e blá, blá, blá… Se aparece o cú de um dos protagonistas, o que você faria?

Ah, desculpe se você é uma pessoa sensível. Eu deveria ter falado ânus? Buraco? Furico, talvez?

Em que mundo você vive? De verdade: EM QUE MUNDO VOCÊ VIVE?

E sim, eu fico irritado porque me parece que as pessoas andam tão imersas em suas malditas bolhas das redes sociais, em seus vídeos de dancinhas, que elas, ao invés de abrirem a porta para enxergar e vivenciar o mundo real, precisam de um filme desse, mediano, fundamentado em uma dita beleza clássica de um ator, para que elas fiquem “em choque” com o que não conseguem enxergar na realidade, bem debaixo dos seus narizes.

É nesse lugar de crítica que minha nota subiu para três estrelas e meia. Subiu porque o diretor/roteirista conseguiu fazer com que o público ficasse em choque com a apatia de personagens que nada mais são do que… um retrato desse próprio público, da própria sociedade atual. O que “Saltburn” mostra é que a sociedade está tão sensível e fingindo que nada está acontecendo — e vamos festejar e dançar e beber e transar — que está sujeita, estamos todos, ao aparecimento de Olivers-mariposas que destroem todo esse falso esplendor de dentro para fora.

‘’Oliver Quick’’, interpretado por Barry Keoghan

Eu rejeitei muita coisa do filme, mas eu tenho uma índole crítica social que está nos meus livros, nos meus contos. Nesse ponto, “Saltburn” é um belíssimo de um tapa na cara, cuspindo verdades enquanto a maioria do público, sentadinha no conforto de suas salas, se diz “em choque”, ou suspira pelo Jacob Elordi, e depois abrem o celular e esvaziam a mente enquanto o mundo pega fogo.

Se “Saltburn” fosse feito por um diretor como Lars Von Trier, meu amigo e minha amiga, você veria o que significa “em choque” e “+18”. Façamos assim: você assiste a “AntiCristo” e a “Ninfomaníaca” e depois nós conversamos sobre “ficar em choque”, tá?

O resto é perfumaria limpinha e bobinha só para causar choquinhos em pessoas que andam sensíveis demais para o meu gosto.

Jacob Elordi em ‘’Saltburn’’

Em que ponto eu me tornei tão gélido? Eu não sei. Creio que as pessoas enxergam muito o Henggo quieto, polido e educado, e se recusam a pegar na minha mão e fazer o mergulho que eu proponho quando converso a sério com as pessoas. Eu enxergo o mundo. Apenas isso. A experiência como repórter de rua me proporcionou isso, mas não apenas. Eu morri algumas vezes, passei por traumas, bullying severo durante anos na escola, e tudo isso foi uma enxada que abriu a minha mente. Por já ter vivenciado choques reais é que “Saltburn” me soa tão… tão… fofo.

É claro que seria demais pedir que as pessoas vissem o mundo como eu vejo. Eu já fui esse sujeito que exige isso, mas mudei bastante nos últimos anos — de fato, creio que não exatamente por consciência e empatia, e sim por autopreservação. Lembra do que falei sobre as pessoas estarem cada vez mais querendo fugir da realidade? Eu vejo isso na prática: quando estou conversando com alguém e começo a entrar em assuntos mais delicados, começo a afundar na mente das pessoas e questionar e provocar e desenterrar coisas… elas fogem.

Saiba de uma coisa: ou você se olha no espelho e encara teus monstros pessoais, escuta o teu abismo interno, ou você corre o risco de chegar um “Oliver” e se aproveitar de ti. E não é o que mais vemos nesses “golpes do amor”, por exemplo? Contudo, também pode ser algo relacionado à coletividade, afinal, uma “sociedade Saltburn” é uma sociedade que elege Olivers que aparentemente entregam soluções fáceis, mas que no fundo só querem incendiar tudo.

Não preciso citar nomes, preciso?

Saia de “Saltburn”, amigo e amiga. Este filme é um alerta para que você acorde antes que um Oliver chegue com uma corda e coloque em torno do teu pescoço enquanto você rola a tela para ver os status do WhatsApp e consumir a vida alheia. Mas se você achar que eu sou exagerado, pessimista, arrogante e que nada disso faz sentido, não se preocupe: sempre tem uma nova dancinha para que você finja que nada está acontecendo, né?

Um brinde à alegria!

Cena de ‘’Saltburn’’

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Written by Henggo

Escritor, Revisor & Ghostwriter. Coleciona trilhas sonoras e nome estranhos de pessoas enquanto espera a chegada dos ETs. Saiba mais em linktr.ee/Henggo

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