Saudade de um quilombo esquecido (ou Fazenda, Milton Nascimento)
Lembranças perdidas de um quilombo que sucumbiu à modernidade e destruiu, esqueceu e maculou suas raízes históricas.
ALGO ME DÓI MUITO QUANDO VEJO O QUILOMBO DE JACAREÍ DOS PRETOS ESQUECER DAS PRÓPRIAS RAÍZES. Meus ancestrais vieram dali, a história da minha família, meu povo, vem dali; minha saudosa avó, Firmina Gomes, e a mãe dela, Maria Adriana Gomes, enraizaram-se lá. E agora, ao ir para Jacareí, vejo como a tão ansiada “modernidade”, essa abstração chamada de “o futuro”, está destruindo as bases de uma cultura. Destruindo simbolicamente com os adolescentes de lá mais interessados no TikTok e nos influencers do que na história do próprio povo; destruindo fisicamente diante do descaso deles com as fontes, as matas, a preservação, a própria vida.
Assim como os ventos que fazem o areal se mover, o esquecimento empurra a cultura para a deterioração. Ventanias que perturbam uma duna não destroem os grãos de areia, mas as ventanias que perturbam uma cultura transformam tudo em pó.
Eu me sinto vazio quando vou para lá. Isso dói. Muito.
Como já expliquei em outros textos, minhas lembranças da infância e da adolescência estão nubladas. Porém, como venho de uma família que ama registros fotográficos e adora se reunir em torno de uma mesa farta para contar histórias, são essas lembranças que me ajudam a rememorar resquícios do sabor que era mergulhar em Jacareí. Nas fotos, principalmente, há ali um sabor de saudade, algo quase idílico de um tempo onde a ausência de energia elétrica (e a inexistência dos celulares) proporcionava noites em torno de um lampião para escutar as muitas reflexões da minha bisavó, Maria Adriana, considerada um “computador humano”. Ali, estão brincadeiras no terreiro, subir nas árvores (algo que eu nunca aprendi), banhos na outrora profunda e assustadora Fonte Grande; causos de gente virando bicho, escravos corajosos, cobras de tamanho colossal e porcos-do-mato vingativos; estão as roças, as matas, danças de tambor de crioula, cordão de São Gonçalo, batuques do bumba-meu-boi; grávidas deixadas de quarentena em quartos escuros, ondas de formigas surgidas do nada, bater panelas para acordar as árvores durante os eclipses.
Sim, eu sei, são crenças populares, antigas, ditas “arcaicas” e “ultrapassadas”. Reconheço isso. É ótimo viver em tempos em que o saber científico se ergue contra achismos, especialmente aqueles surgidos do obscurantismo de alguns. Contudo, é impossível não pensar como todo esse saber que sobrepujou as crenças antigas, não conseguiu dar às pessoas do quilombo um fogo, um desejo de preservar suas raízes. Hoje, Jacareí dos Pretos é basicamente um bairro qualquer do município de Icatu, vivendo de resquícios, migalhas, fagulhas de um passado ignorado e até ridicularizado pelos mais novos.
E o esquecer
Era tão normal que o tempo parava
E a meninada respirava o vento
Até vir a noite e os velhos falavam
Coisas dessa vida
O que aconteceu, querido quilombo? Por que sucumbiste a esse tempo corrido em que ninguém mais tem tempo a perder e muitos sofrem do mal de se sentir por fora das novidades? Onde foi parar a sensação de outro mundo que sentíamos ao pisar em teu areal? Hoje, Jacareí, os velhos falam coisas dessa vida, sim, mas quem os escuta? Ou, mesmo que o façam, será que fazem isso ativamente, prestando atenção às palavras que guardam as memórias de quem somos e fomos? Meu lugar de memória era o quilombo, pois ali eu tinha essa percepção de ancestralidade que se comunga com o tempo presente; ali, era um movimento de identificação com meus antepassados e toda a força de suas lutas.
Tudo se foi com as fumaças das queimadas, quilombo.
De certo modo, esvaí-me em fumaça também.
Tinha sabiá
Tinha laranjeira
Tinha manga rosa
Tinha o sol da manhã
Tinha, você lembra? E tinha cheiro verde, melancia, cenoura, folhas, verdura, frutas; farinha feita na Casa do Forno, vinho de buriti, doce de manga, suco de murici, bolo de macaxeira, bolo de massa, de tapioca… Era pobreza, sim, mas a terra nos dava de comer quando nos dedicávamos a ela. Era uma fartura de possibilidades. Então, chegou a modernidade, o “futuro”, e as pessoas de lá mudaram, acostumaram-se a comprar tudo de fora, acomodaram-se no conforto de suas casas que hoje são de tijolos, trancadas com cadeados, já que ninguém mais se conhece. Hoje, a terra que antes dava de tudo, agora só serve como estrada para os carros de outros lugares que vão deixar cheiro verde, melancia, cenoura, folhas, verduras, frutas, farinha, sucos e bolos de porta em porta.
A comodidade acelerou o distanciamento das pessoas em relação à terra. E o distanciamento culminou em ganância, violência, drogas, bebedeira, poluição das fontes, descaso generalizado. O quilombo está morrendo.
Sim, o quilombo está morrendo.
Escutar “Fazenda” de Milton Nascimento é um processo de saudade; de lembrar de tempos de tranquilidade quando a vida parecia mais simples, ao menos, ali em Jacareí dos Pretos. Lembrar de quando eu ainda tinha saudade dali e sentia-me conectado ao lugar. O povo se livrou dos pilões, esqueceu-se de como se torra café, mantém as mãos distantes da roça, faz pilhéria com as danças tradicionais, joga lixo na fonte, desmata tudo.
A música conversa comigo, sim, mas abraça memórias, não fatos presentes. O quilombo está morrendo, o quilombo está morrendo. E ninguém se deu conta. Algo morre quando sai de nosso peito. Meu coração não está mais lá.
Acho que o quilombo está morrendo dentro de mim.
Música: Fazenda, Milton Nascimento (Nelson Angelo)
Álbum: Geraes, 1976
Água de beber
Bica no quintal
Sede de viver tudo
E o esquecer
Era tão normal que o tempo parava
E a meninada respirava o vento
Até vir a noite e os velhos falavam
Coisas dessa vida
Eu era criança
Hoje é você
E no amanhã, nós
Eu era criança
Hoje é você
E no amanhã, nós
Água de beber
Bica no quintal
Sede de viver tudo
E o esquecer
Era tão normal que o tempo parava
Tinha sabiá
Tinha laranjeira
Tinha manga rosa
Tinha o sol da manhã
E na despedida
Tios na varanda
Jipe na estrada
E o coração lá
Tios na varanda
Jipe na estrada
E o coração lá
Tios na varanda
Jipe na estrada
E o coração lá