ÀS VEZES HÁ UMA NOÇÃO IDÍLICA DOS PROCESSOS QUE CERCAM UM ARTISTA INDEPENDENTE. Enquanto alguns se apegam à imagem de glamour e outros aplaudem a dita “coragem de buscar um sonho”, muitos se voltam para a velha máxima do “artista vendedor de arte na praia”. No meio disso tudo, com a realidade até o pescoço, ficamos entre a cruz e a espada — ou entre os pincéis e os solventes, lápis e teclados. Isso cansa.
Dez anos atrás, quando me afastei do Jornalismo, eu estava com uma vitalidade de credulidade perante minha decisão. Acolei redes sociais, conquistei alguns milhares de seguidores, produzi consideravelmente, ganhei prêmios literários, me expressei em várias técnicas artísticas… E eu sorria. Sorria um riso de esperança impulsionado por aquela certeza do “vai dar certo”. E tanto sorri que, os olhos cobertos por essa forçação, não enxerguei os sinais do problema que é embarcar de cabeça em um sonho desse gênero.
A independência almejada aconteceu, não posso negar. Porém, há um detalhe: não há liberdade sem independência financeira. E é cansativo.
Cansa porque a figura do “artista independente que correu atrás do sonho” mascara essa realidade que me afoga. É cansativo ser taxado de “vagabundo” e, ao mesmo tempo, de “rico” ao verem a quantidade de telas que pintei. Estressante quando os seguidores que leem teus textos, veem tuas artes, nunca se manifestam ou compram, pediam coisas grátis, mas, quando você abandona as redes sociais, te mandam mensagens dizendo que “gostavam muito” do meu trabalho. Cansa quando você vem de uma família de educadores que te olham lendo um livro e laçam perguntas como “por que tu não larga isso e vai se divertir?”
Cansa. Muito.
Vou te dizer a realidade (a minha realidade): em três anos vendendo cópias de minhas artes na UrbanArts, por exemplo, eu ganhei em comissão menos de R$5.000,00. São R$1.666,00 por ano, R$ 138,88 por mês. E não, não culpo o sistema de comissões. É uma forma de trabalho digna. Porém, joga sobre o artista muito da obrigação de “vender-se”. E aí reside mais um problema que só agora, nos últimos tempos, tomei consciência. Eu não gosto de “me vender”. E veja que tentei bastante.
Faça vídeos? Check.
Seja engajado nas redes? Check.
Curta outros artistas e escritores? Check.
Produza conteúdo regularmente? Check.
Tenha um TikTok? Check.
Tenha um canal no YouTube? Check.
Mostre-se? Check.
Conte sua vida? Check.
Faça promoções? Check.
Fale sobre seu trabalho? Check.
Engaje-se com a comunidade? Check.
Faça parcerias? Check.
Estude bastante? Check.
Participe de debates? Check.
Ganhe prêmios? Check.
Conceda entrevistas? Check.
Apareça nos jornais? Check.
Check. Check. Check. Check…
Eu me pergunto o motivo de não ter dado certo. Ou será que minhas expectativas não me deixam enxergar as partes do meu corpo que não se feriram? Deveria culpar as redes sociais por construírem uma idealização estúpida de sucesso que eu deveria alcançar? Às vezes, sou levado a pensar que o bullying foi responsável por retardar em, no mínimo, uma década o meu desenvolvimento na comunicação.
Posso culpar meu passado por quem sou no presente?
Dez anos depois daquela quinta-feira ensolarada quando sai da Secretaria de Saúde, meu último dia, estou agridoce. Livre artisticamente, preso à ajuda financeira de terceiros. E sabe o que é engraçado: quando voltei para a UFMA para cursas Artes Visuais, havia toda uma piada construída em cima da imagem de Van Gogh, o estereótipo do “gênio que morreu pobre”. Eu mesmo tinha uma idealização em cima desse conceito, um sentimentalismo em torno da vida desse artista e dos percalços de seu ofício. Da mesma forma, apaixonado por Henri de Toulouse-Lautrec, grande artista francês, eu pensava mais sobre o sonho que ambos haviam seguido do que sobre as consequências de fazê-lo. Mais ainda, engajado na minha decisão, achava que hoje em dia, com as redes sociais, maior exposição midiática, tudo seria diferente.
Não foi.
Quando você se recusa a “se vender”, a “transformar-se em um produto massivo”, as coisas ficam bem difíceis. Essa é a verdade. Muitas pessoas vão te aplaudir, não duvide. Mas aquela pessoa que está ali fazendo uma dancinha da moda enquanto pinta uma tela à óleo terá mais engajamento. Aquela que imprime algumas dezenas de livros (mesmo que isso signifique se endividar) ganhará o reconhecimento como escritora/escritor dez vezes mais rápido. Se você fizer algumas coisas de graça, então, pode esperar pelo crescimento dos seguidores. Quanto mais seguidores, mais visibilidade. Visibilidade não gera mais vendas, mas pode resultar em parcerias com empresas que não se importam com sua mensagem e só querem divulgar produtos. E f*da-se se você é um neonazista estúpido ou se escreve barbaridades pela internet.
Desculpe. Ficou pesado. É só um desabafo. Tudo é um desabafo.
Tenho orgulho de não ter insônia, mas não é raro eu acordar às quatro da manhã com a cabeça cheia de conjecturas. No escuro, bate um desespero, pensamento terríveis de “e se?”. Um deles é quanto às escolhas de vida. Se o primeiro vestibular que fiz para Direito na UFMA não tivesse sido anulado, onde eu estaria? Será que hoje eu seria um advogado, promotor, juiz como meus tios pensavam que eu seria? Eu seria muito rico, mas viveria num eterno “e se eu tivesse escolhido o lado artístico”? Ou será que sucumbiria ao pior?
O pior…
Teve um colega meu que enveredou pelo Direito. Foi uma festa. Cursou tudo, passou na OAB, depois fez concurso e entrou no serviço público. Os pais dele ficaram exultantes, muitos diziam que “estava com a vida ganha”. Salário ótimo, noiva, apartamento recém-comprado, investimentos, ninguém perguntava se ele estava feliz. Só viam a máscara do poder, do dinheiro, dos lucros, ternos, carros, ‘’doutor’’ Fulano de Tal. Eu lembro que ele me dizia que sonhava em ser trilheiro, viver na estrada, levar pessoas para vivenciarem florestas e rios. Mas a vida, a sociedade, não gosta de sonhos que não se convertam em altas somas. Não, não gosta.
Quatro meses depois de ser aprovado no concurso, meu amigo se suicidou no novíssimo apartamento que havia comprado. Isso me quebrou.
Há uma desagregação entre correr em busca do sonho e ser apoiado a fazer isso. Os aplausos efusivos escondem pensamentos preconceituosos, críticos, que virão em forma de olhares enviesados, perguntas de duplo sentido, sugestões de “quando vais arranjar um trabalho de verdade” ou “sabia que abriu um concurso público?”.
Seja genuíno, recomendam todos. Mas, no fechar das cortinas, nas coxias da vida, a verdade é que ninguém quer saber de tuas lágrimas na escuridão dos quartos.
A premissa de “trabalhar muito, acumular rendimentos, aposentar-se aos 80 anos e aproveitar o restante da vida” me causa angústia. Sério? Isso é a “vida ideal”? De verdade? Já parou para refletir sobre trabalhar por décadas, como um jumento, apenas para acumular dinheiro que talvez nem chegue a aproveitar plenamente, devido à falta de tempo e saúde? Ver finais de semana e férias não como direito, mas como recompensa por ter se matado a semana inteira? Passar cinco dias estressada, estressado, com um trabalho que você só exerce porque não teve a chance de viver do que te alegra? Quantas dessas milhares de pessoas que prestam concurso são conscientes de onde estão se metendo? Elas gostariam de fazer aquilo? Ou o fazem só porque precisam, em busca da famigerada “estabilidade”? É uma pergunta retórica.
Aí a sociedade te diz para ter filhos, casar, ter casa, carro, viajar nas férias, colocar os filhos em boas escolas… E você precisa de dinheiro para tudo isso. E como correr atrás de um sonho pressupõe renunciar a todo esse “ideal humano”, quando você opta por essa opção é taxado de egoísta e de coisas piores.
Em suma, é preferível levar uma vida de m*rda, vazia, mas financeiramente esplendorosa. E como as religiões defendem que a paternidade e a maternidade são a “suprema felicidade”, tudo bem, teus filhos vão realizar teus sonhos, não se preocupe. Deus te recompensará pelo esforço de criar pequenos humanos na farsa de que “no futuro” poderão fazer o que quiserem — só após se aposentarem, é claro.
Tudo isso cansa.
Como Cazuza canta em “Cobaias de Deus”, “traga uma corda, irmão / irmão acorda! / nós as cobaias / vivemos muito sós”. Muito, muito sós. E cansados.