Seu “deus literário” não passa de um reles mortal

Quando mal gerida, a admiração por nossos ídolos pode se tornar uma armadilha que gera bloqueios criativos e autoboicote.

Henggo
6 min readSep 24, 2024
Um homem com pose pomposa segura uma pena de escrita com a mão direita enquanto a mão esquerda está sobre o peito, com orgulho desmedido.
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ALGO QUE ME INCOMODA É QUANDO VEJO PESSOAS QUE SUCUMBEM À IDOLATRIA DE TAL FORMA QUE SE ANULAM EM PROL DE SEUS ÍDOLOS. Acontece em todas as áreas de trabalho, é claro. Porém, no caso da escrita criativa, noto que esse é o tipo de sentimento que, quando mal gerido, pode levar muitos a um processo de tanta admiração que entram em pensamentos de autoboicote. Ao longo de tantos anos escrevendo — especialmente, mergulhado no Wattpad — o que mais leio são frases do tipo “eu nunca vou conseguir escrever desse jeito”, “a escrita dessa pessoa é impossível”, “meu livro não chega aos pés desse”, ou a terrível “após ler esse livro tão perfeito, sei que nunca vou chegar a esse ponto.”

Como a escrita criativa é uma área na qual o sonho de obter sucesso parece muito possível (afinal, em teoria, é “só sentar e escrever”), esses pensamentos são um veneno que deteriora a necessidade de amadurecer o ofício da escrita.

A admiração por alguém é algo natural. Todos seguimos, aplaudimos e até nos espelhamos em pessoas que admiramos. Está tudo bem com isso. Qualquer animal age do mesmo jeito, copiando um semelhante que acha superior e que pode ensinar-lhe algo. Contudo, quando o admirador já carrega consigo sentimentos de autodepreciação, o que seria uma oportunidade de evolução se torna um gatilho para a destruição dos próprios talentos.

Conheço pessoas que, por exemplo, fizeram o curso de escrita do Neil Gaiman e, ao invés de absorver o que ele ensina ali, elas ficaram em tal admiração, endeusamento, que terminaram o curso ainda mais imersas na noção de “nunca vou alcançar o nível desse cara”. O problema disso é o esquecimento de que Neil Gaiman (e qualquer outra pessoa que hoje tem sucesso) começou de baixo, lentamente, errando, tentando, chorando, tendo suas crises.

Para mim, uma questão fundamental é como tendemos a exaltar muito os grandes feitos, o resultado, e esquecemos de todo o percurso até a pessoa chegar àquela glória. E as redes sociais estão aí como prova do que eu falo. Se antes delas isso já acontecia naturalmente, instintivamente, depois da ascensão das mídias sociais as coisas pioraram ainda mais.

Muitos booktubers e booktokers, os chamados “influencers literários”, amam alimentar isso propondo metas de leituras, escrita, fórmulas de roteiros mirabolantes que no vídeo parecem muito fáceis e dão a entender que se você, “mero mortal”, não consegue, então, você é, no mínimo, uma ameba. Títulos chamativos como “O roteiro definitivo para você”, “Ganhei XXXX reais vendendo livros”, “Escreva seu livro em quinze dias” e coisas desse gênero só servem para duas coisas: atrair atenção e alimentar ansiedades.

Poucos deles (por vezes, nenhum deles) mostram o processo de fato, com as quedas, as dificuldades, as vontades de desistir; os momentos em que todos nós da escrita nos sentimos alquebrados; personagens que não dão certo, livros deixados para trás, folhas e mais folhas, arquivos e mais arquivos, os quais são um símbolo de nosso processo de tentar.

E esse é um ponto que desejo que você preste atenção: eles mostram muito o verbo conquistar, mas esquecem do verbo tentar.

A impressão em muitos desses vídeos é que um livro brota em um estalar de dedos e qualquer pessoa é perfeitamente capaz de escrever milhares e milhares de palavras como o Stephen King faz.

Isso é mentira, ok?

Em “Sobre a Escrita”, autobiografia misturada a guia de escrita criativa do Stephen King, o próprio autor explica que a jornada dele foi complicada, com muitos altos e baixos, muitas angústias, tentativas e erros, até ele chegar ao ponto em que pode viver da escrita. Contudo, você já notou como a maioria das pessoas que comenta sobre esse livro ignora toda a história pessoal e foca apenas no sucesso do King? Elas esquecem que o cerne desse livro é: a escrita não acontece de uma hora para outra, estude.

E aqui quero falar com você sobre talento.

Muitas, muitas, muitas pessoas que conversam comigo vêm falar sobre o famigerado “talento”. Que elas não têm talento, que certas pessoas parecem ter um talento especial para a escrita, um dom, algo quase místico. Ok, vamos lá, direto e reto: talento sozinho não serve para nada. Certo? É muito difícil que a pessoa que você admira por ser “talentosa” não tenha feito nenhum tipo de esforço para chegar a um patamar de sucesso. Por mais genial que aparente ser, se ela tivesse ficado sentada no sofá de casa imersa no pensamento de que “tenho talento, não preciso fazer mais nada”, essa pessoa não seria teu ídolo. Por quê? Porque ela não seria descoberta e os editores não saberiam da existência dela.

Repito: talento sozinho não serve para nada.

De fato, quando alguém diz que uma pessoa está em um patamar de sucesso porque “tem um dom”, “tem um talento”, confesso que isso me dá uma sensação de que o público acha que tudo na vida daquela pessoa foi fácil. E isso, essa falsa noção de facilidade, alimenta autoboicote, bloqueio criativo, ansiedades, angústias, dezenas e dezenas de livros sem conclusão. Afinal, como você, reles mortal, vai chegar a um patamar como o de Clarice Lispector? Impossível.

Não, não é.

Outro problema dessas noções deterioradas sobre a escrita é o modo como isso distorce a percepção da pessoa sobre o próprio texto. Na época em que eu dava aulas particulares de escrita, eu tive a oportunidade de ver textos maravilhosos diante de mim. Porém, ao conversar com os alunos, autores desses textos, o que eu mais recebia eram frases auto depreciativas, muitas pessoas surpresas com um eventual elogio. Lembro muito de um garoto que chegou a perguntar se eu estava mesmo com o texto dele, ou se eu tinha me confundido com o de outra pessoa “melhor”.

Isso vem de vários lugares, mas noto que, no caso da escrita, tem muito do fato de vivermos em uma sociedade que não estimula a leitura, trata os livros como artigos de luxo e seus autores como deuses de mentalidade inalcançável. De fato, toda a área artística está imersa nisso. Artistas vivem em uma balança social entre serem tidos como vagabundos por uns e como gênios por outros. Em ambos os casos, é a velha e terrível noção de que “arte não é trabalho”. E, não sendo trabalho, ou a pessoa tem um dom para aquilo, ou ela deve desistir de tentar alcançar esse Olimpo.

Não vou nem me aprofundar sobre as pessoas que colocaram na cabeça que a escrita machadiana, rebuscada, é sinônimo de boa escrita. No Wattpad, por exemplo, está lotado de livros péssimos, mas que os autores acham que são ótimos só por encherem de frases complexas, mesóclises, próclises e um vocabulário do século XVIII.

Não faça isso, por favor, não passe essa vergonhe. Beira o cafona.

Sabe quando notei que essa chave sobre endeusamento virou dentro de mim: depois que comecei a ler os livros da minha autora favorita, Lygia Fagundes Telles. De repente, comecei a vê-los não como inalcançáveis, mas sim como possibilidades de melhorar o que eu faço. Hoje leio os livros que gosto tentando perceber como os autores moldaram tal personagem, como foi o encaixe das tramas, o que fizeram na ambientação.

Ao invés de olhar com endeusamento, eu os olho com um mero olhar de avidez por conhecimento, ciente de que essas pessoas podem me ensinar muita coisa, mas isso não significa que elas sejam necessariamente inalcançáveis.

E outra: coloque na cabeça que o livro que você escreve hoje é a base para um livro melhor que você escreverá amanhã.

Meus amigos reclamam muito do fato de eu ter deixado o conto “O Carniceiro de Deus” publicado no Kindle porque (e eu sei disso) é um texto antigo, mal feito, sem maturidade narrativa; um símbolo de um escritor adolescente. Porém, como explico para eles, “O Carniceiro de Deus” faz parte da minha jornada literária e eu não desejo esconder isso. Muitas pessoas (inclusive, a própria Lygia Fagundes Telles) tendem a esconder seus primeiros trabalhos. Discordo dessa atitude.

Quando você deixa o público ver quem você era, com os erros da profissão, as falhas, ou mesmo uma incapacidade pela falta de maturidade naquela época passada, você contribui para destruir esse endeusamento, impede que o público coloque uma coroa de perfeição na tua cabeça (e que pode fazer teu ego inflar demais). Acima de tudo, mostrar o processo faz com que o público tenha noção de que todos somos humanos e todos temos a possibilidade de construir histórias incríveis.

É uma questão de humanização.

Portanto, estude, esforce-se, aplauda-se em primeiro lugar, ligue o foda-se para o que te dizem e tente; erre, caia, termine um livro e comece outro. E outro e outros. Organize as ideias, embarque em outros gêneros que você não tem afinidade, desafie-se. Leia teus ídolos com um olhar mais humano e aprenda com eles, faça da leitura uma jornada de aprendizado, não de auto-esfaqueamento.

E pare de querer ser um deus, uma deusa da literatura. Seja apenas você. Já está de bom tamanho.

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Written by Henggo

Escritor, Revisor & Ghostwriter. Coleciona trilhas sonoras e nome estranhos de pessoas enquanto espera a chegada dos ETs. Saiba mais em linktr.ee/Henggo

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