Sinto falta da minha avó (ou To Talk To You, PJ Harvey)

Percepções sobre uma ausência que me ensinou a ser quem sou e silenciar diante de um mundo incapaz de escutar.

Henggo
4 min readNov 22, 2024
Em um ambiente vasto e totalmente branco, vê-se um garoto e uma senhora lado a lado observando o vazio.
Exercício de escuta na infinitude. Arquivo pessoal.

EU SINTO SAUDADE DA MINHA AVÓ, FIRMINA GOMES. Sinto falta de ir para o quilombo e vê-la na varanda, pernas para cima, observando o mundo. Faltam as conversas, o olhar de empatia, capacidade de escuta; a experiência de décadas de vida usada para aconselhar sem gritar, serenar sem entristecer. Sinto falta dos remédios e de passear pela mata, enquanto ela ia me contando histórias sobre cada planta. Há um vazio de causos de lembranças de tempos sem energia elétrica, onde a força de trabalho vinha do sangue e do suor do povo preto.

Eu sinto falta da conexão.

Oh, grandmother

oh, vovó

How I miss you

Como sinto sua falta

Under the earth

Embaixo da terra

Wish I was with you

Queria estar com você

To Talk To You

Pra falar com você

To Talk To You

Pra falar com você

Minha avó tinha sonhos estranhos e eu fiquei com eles, roubei-os para mim, apossei-me deles. Tenho os mesmos sonhos, as mesmas sensações quando chego a uma casa e sinto “uma energia ruim”. E a capacidade de mergulhar nas pessoas, destrinchar, esmiuçar, esquartejar o psicológico alheio como se invadisse as janelas dos olhos da alma. E também me canso de fazer isso, vovó, pois, assim como a senhora, eu enxergo demais.

Deveríamos ter conversado mais sobre essa dor de ser humano…

Lembra como as pessoas odiavam que falássemos sobre a morte, vovó? E como nos olhavam torto quando nos viam contando piadas sobre a Grande Dama Que A Todos Abraça? Pessoas estranhas, vovó, que falam tanto de vida e esquecem que é na morte que aprendemos a valorizá-la. Foi graças aos seus ensinamentos que enfrentei minhas mortes e sorri pelo aprendizado. “Tudo o que vive, morre”, a senhora sempre me dizia isso. Algo simples, mas de uma profundidade abissal em um mundo esquecido das obviedades, vovó.

Sinto falta do nosso entendimento mudo.

If I laid on the earth

Se eu deitasse na terra

Could you hear me?

Você conseguiria me ouvir?

Eu tenho a impressão de que vovó sabia quando ia morrer — ou, ao menos, sentia os sinais da proximidade da Dama. Mesmo assim, ela carregava uma serenidade invejável. Lembro agora de uma entrevista da Elke Maravilha para o programa “Provocações”, com Antônio Abujamra, em 2003, quando ela explicou que não era uma pessoa dramática, mas sim trágica, pois “a pessoa que tem consciência de que o destino é nascer, viver e morrer, não fica fazendo drama”. Vovó era trágica. Herdei isso dela.

E tenho medo.

Confesso que por vezes, à noite, eu falo com ela, peço conselhos, iluminação. Talvez eu fale com o vazio, talvez com meu próprio coração; talvez esteja faminto para que um dia o escuro me responda, estapeie, chacoalhe. Mas faço. Vovó me ensinou a ver beleza na escuridão — e não à toa, escuridão é a palavra de que mais gosto e a que mais aparece nos meus livros. A escuridão é confortável, vovó. Perigosa, viçosa, viciante, mas mundana por nos fazer banais.

Obrigado pela escuridão.

Se eu deitar

If I lay

Se eu deitar

If I lay

Oh, vovó, o mundo está tão estranho. Na última semana, um homem espancou outro até a morte no coreto da praça central de Icatu, sua cidade. E ninguém fez nada, vovó, ninguém fez nada. A rampa estava cheia de pessoas à espera de peixe, a praça movimentada, pessoas na igreja e ninguém se dignou a salvar o rapaz. Porém, apontaram os celulares e filmaram o horror. Lembra que a senhora me dizia para não temer os bichos, mas os homens cujos corações estão cada vez mais poluídos? Ninguém fez nada, vovó.

Ninguém fez nada…

Querida vovó Firmina, eu queria falar com a senhora para ter alguma esperança de que o mundo ainda tem jeito, pois cada vez mais só enxergo cansaço enquanto as pessoas se embebedam até cair enquanto a música do carro berra no último volume para não terem que conversar. Sou o “esquisito que gosta de assuntos sérios”, como me disseram certa vez. “Tolice”, como a senhora dizia. A senhora me ensinou a não fugir deles. Obrigado por ter me ensinado a amar minhas esquisitices.

Brindemos, vovó, com vinho de buriti, à esquecida arte de saber-se humano.

Música: To Talk To You, PJ Harvey (PJ Harvey)

Álbum: White Chalk, 2007

Oh, vovó

Oh, grandmother

Como sinto sua falta

How I miss you

Embaixo da terra

Under the earth

Com você queria estar

Wish I was with you

Pra falar com você

To talk to you

Pra falar com você

To talk to you

Eu encontrei alguém

I found somebody

A quem tento me entregar

Try to give myself to

Várias vezes

Many times

Eu quis falar com você

I wanted to talk to you

Se eu deitasse na terra

If I laid on the earth

Você conseguiria ouvir?

Could you hear?

Oh, vovó

Oh, grandmother

Estou tão sozinho

I’m so lonely
Por toda minha vida

All my life

Se eu deitasse no chão

If I laid on the earth

Você conseguiria ouvir?

Could you hear?

Se eu deitar

If I lay
Mary

Mary

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Henggo
Henggo

Written by Henggo

Escritor, Revisor & Ghostwriter. Coleciona trilhas sonoras e nome estranhos de pessoas enquanto espera a chegada dos ETs. Saiba mais em linktr.ee/Henggo

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