Sobre arrependimentos gritantes (ou Primeiros Erros, Kiko Zambianchi)
Memórias de um passado esquecido que ressoam no presente de um adulto tentando compreender a escuridão de um menino.
AQUELES TRÊS MINUTOS DE PARADA CARDÍACA DURANTE A CIRURGIA DE APENDICITE AOS 17 ANOS ME FEZ ESQUECER DE BOA PARTE DO MEU PASSADO. O que lembro hoje é fruto de um processo longo de rememoração graças às fotos e lembranças que me contaram, ou são os traumas tão arraigados em mim que sobreviveram junto comigo à parada cardíaca. Em meio a esses últimos, há muitos pontos que considero como erros, equívocos, arrependimentos que eu gostaria muito que tivessem sido apagados. Eu queria de fato estar vazio, zerado, sem nada; uma página em branco de falsa pureza, esquecido dos próprios pecados e dos pecados que cometeram a mim.
Mas é uma tolice, seu sei.
O erro é algo contínuo, carrapato sugador de pensamentos, bicho que dorme e acorda com a gente. E que sobrevive mesmo depois que morremos, pois nossos erros se alinhavam para junto de outras tantas vidas que perpassam a nossa.
Se um dia eu pudesse ver
Meu passado inteiro
E fizesse parar de chover
Nos primeiros erros, oh
É muito dolorido ver atitudes da infância sob um olhar adulto. Tendemos a exigir daquele menininho uma coragem que talvez não tenhamos nem hoje, mas queríamos que ele tivesse tido para que o “primeiro erro”, o “Um Erro Para a Todos Governar”, não fosse o primeiro floco de neve que origina a avalanche. Burrice, eu sei. Se não fosse esse floco de neve, seria outro floco, outra coisa. E tudo seria diferente.
Cada um de nós alimenta nuvens específicas que, ao descarregarem sua chuva sobre nossas raízes, fazem brotar árvores que crescem rumo a quem somos no presente. Um galho diferente aqui, um pouco a mais, ou a menos de água, um erro evitado, e seríamos outra árvore totalmente diferente.
Oito bilhões e meio de árvores distintas nascidas numa estufa; uma árvore enraizada em outras, a todas, talvez; erros que se mesclam, mesclas que mudam vidas. Vidas dependentes dos gritantes erros que todos nós cometemos.
Se você não entende, não vê
Se não me vê, não entende
Não procure saber onde estou
Se o meu jeito te surpreende
Eu julgo o menino que foi abusado naquele armário durante uma brincadeira de esconde-esconde no escuro. Até hoje, mesmo visitando o abismo, conversando com a escuridão, eu me flagro pensando no maldito “e se”: e se eu lembrasse do rosto de quem fez aquilo comigo? E se, naquele dia, eu tivesse gritado? E se eu tivesse mordido? E se, quando as pessoas brigaram por eu estar com a bermuda molhada, eu tivesse dito que não era culpado e que aquilo não era urina? E se eu tivesse batido? E se eu tivesse corrido? E se eu não tivesse ficado paralisado?
E se?
Tantos “e se”. Tantos, tantos. Quem eu seria hoje se um desses “e se” tivesse se concluído? Que tipo de árvore eu seria? Qual mundo eu teria forjado ao meu redor? Escreveria o que escrevo? Amaria o silêncio como amo? Será que eu teria a capacidade de silenciar diante da morte e sorrir? Não é estranho pensar como uma cicatriz dessa desencadeia coisas e mais coisas, sendo que muitas delas são até… boas?
Sou quem eu sou porque choveu cinzas no dia do que considero como “primeiro erro”, aquele que não foi apagado do meu coração paralisado.
É uma punhalada muito forte naquele menininho de 10 anos, eu sei. Há um fardo grande de nascer homem em uma sociedade machista, pois a maioria se recusa a te escutar. E se você chora, alguém considera que isso é um erro e te diz para “ser macho” e “engolir o choro”. E o erro generalizado calcado em temperos religiosos sobre pecado fez com que eu me calasse naquele dia, eu sei. É um alinhavo de erros sem fim. De anos e anos, décadas, séculos, milênios de silenciamento.
Todos nós estamos errados quando um estupro acontece, mas não a vítima que não gritou. Foi uma psicóloga que me disse isso. Libertou minha mente. Ainda enxergo o erro, mas eu abraço o menino. Entre perdas e ganhos, estamos bem. O “primeiro erro” nos moldou para suportarmos muita coisa.
Aprendi a escrever porque ali, naquele armário, minha mente apagou. Meu “primeiro erro” foi minha “primeira morte”. Tenho a impressão de que eu morro sempre que escrevo um livro, sabia? Não consigo evitar. Em todos os meus contos, romances, textos, eu falo sobre Madeleine, como eu apelidei a Morte.
Há uma serenidade aqui dentro que ressoa como o prenúncio de uma certeza.
Meu caminho é cada manhã
Não procure saber onde vou
Meu destino não é de ninguém
Eu não deixo os meus passos no chão
Há muita beleza no silêncio do abismo. Sentado aqui, há uma tranquilidade em esmiuçar o erro, os erros, e perdoar cada um deles, sejam eles de fato errados ou não. E há luz lá, no fundo, ciente de que está tudo bem. Apesar de haver muitos buracos e lugares escuros nas prateleiras da biblioteca ao redor do abismo, muitos medos desapareceram. Não todos, mas muitos. A luz que entra no alto do poço ilumina as páginas em branco de erros vindouros, formulários à espera de serem preenchidos. E serão.
Pois a vida é errar e o erro nos ensina a viver.
Música: Primeiros erros, Kiko Zambianchi (Francisco Jośe Zambianchi)
Álbum: Choque, 1985
Meu caminho é cada manhã
Não procure saber onde vou
Meu destino não é de ninguém
Eu não deixo os meus passos no chão
Se você não entende, não vê
Se não me vê, não entende
Não procure saber onde estou
Se o meu jeito te surpreende
Se o meu corpo virasse sol
Minha mente virasse sol
Mas só chove e chove
Chove e chove
Se um dia eu pudesse ver
Meu passado inteiro
E fizesse parar de chover
Nos primeiros erros, oh
O meu corpo viraria sol
Minha mente viraria…
Mas só chove e chove
Chove e chove
Se um dia eu pudesse ver
Meu passado inteiro
E fizesse parar de chover
Nos primeiros erros, oh
O meu corpo viraria sol
Minha mente viraria…
Mas só chove e chove
Chove e chove, oh
O meu corpo viraria sol
Minha mente viraria sol
Mas só chove e chove
Chove e chove, oh
Chove e chove, oh
Chove e chove, oh
Chove e chove