Sobre Coragem e Solitude (ou “Comentário a Respeito de John”, Belchior)
Mergulhar no oceano-abismo de nossa alma é fundamental para encarar um mundo que exige muito e ajuda pouco.
QUANTO MAIS ENVELHEÇO, MAIS PERCEBO O MEDO QUE A MAIORIA DAS PESSOAS SENTE DE SI MESMAS. Somos todos oceanos que se estendem até alcançar horizontes de possibilidades, imersos em infinitudes que inspiram transformações, plantios, reflexões, mas também dores, dúvidas e angústias. A meu ver, é nesse ponto que a maioria evita esse mergulho: o autoconhecimento machuca, estraçalha; exige a coragem de controlar o próprio barco-vida e enfrentar as ondas das opiniões alheias. Não, não é nada simples. E é perante essa complexidade que muitos sucumbem a fórmulas tolas de “como ser feliz”, aos autoritarismos das religiões na promessa de paraísos post-mortem (ou de fugas de um inventado inferno); escutam os outros na tentativa de se integrar a um grupo que forneça uma ilha de segurança, um barco salvador que chamam de “liberdade”, porém, na realidade, exige que a pessoa ignore e até envenene o oceano que traz dentro de si.
Não é bonito enfrentar a força das ondas dos outros. Sabe aquela velha história de “remar contra a maré”? É cansativo, chato, às vezes, triste. Contudo, quando você dá o primeiro passo nesse percurso, quando começa a perceber que aguenta a pressão das opiniões dos outros, que consegue nadar e buscar fôlego para mais e mais investidas, esse processo se torna irreversível. De pouco a pouco, você começa a notar que aquilo que muitos chamam pejorativamente de solidão, esquisitice, na verdade, é o vigor da solitude, a capacidade de ser inteiro; de viver bem consigo mesmo.
Foi munido pela certeza desse sentimento que um dia parei para de fato escutar a música “Comentário a Respeito de John”, de Belchior, e um verso logo chamou minha atenção:
Não preciso que me digam
De que lado nasce o sol
Porque bate lá meu coração
Creio que um dos momentos mais decisivos da minha vida foi quando desisti de cursar Direito para mergulhar no Jornalismo. Aos dezenove anos, já no terceiro período de Direito, envolto pela expectativa de cursar uma graduação “garantidora de futuro” e que “abre um leque de oportunidades”, algo mudou. Eu, até então um garoto submisso, sobrevivente do bullying, dado a fazer sempre o que era esperado de mim, tomei a coragem de escutar as batidas do meu coração e me virar para onde nasce o meu sol.
Conscientemente, ali foi a primeira vez que decidi tomar as rédeas da situação e virar meu barco para onde eu queria.
Olha, eu odiava aquela turma de Direito. Havia um ego, uma sensação quase generalizada de “sou superior”, que me arrepiava. Acredito que minha índole foi desafiada e solidificada ali. Quando, no primeiro dia de aula, uma menina, filha de um desembargador, chegou de tailleur e de notebook, fazendo questão de dizer frases como “meu pai aponta que tal lei é incongruente”, eu soube que estava no lugar errado. Pena que demorei tanto a explodir.
Quando você passa muitos anos de cabeça abaixada, amedrontado, condicionado pelo bullying a encarar todas as pessoas como se fossem potenciais ameaças, a ver qualquer elogio como escárnio, é complicado ter um rompante de mudança. O fardo, que para alguns pode pesar uns 100 kg, para mim parecia pesar 10 toneladas. Mas vou te dizer: um gole de coragem, uma simples gota, inebria, energiza, impulsiona.
A mudança que fiz do Direito para o Jornalismo foi a gota que se espalhou pelo meu oceano; o colírio que desanuviou meu olhar diante da vida e me fez enxergar cada vez mais possibilidades.
Por exemplo, vamos para a Universidade Federal do Maranhão, ano de 2009. Eu estava no terceiro período de Jornalismo quando anunciei que faria a seletiva para um estágio como repórter na Rádio Universidade FM. Foi um choque para os meus amigos. Como alguém tão calado, envergonhado, tímido, que mal olhava nos olhos das pessoas, seria repórter? Entrevistaria as pessoas, mesmo que fosse apenas por áudio? E mesmo assim, eu fui lá, “na cara e na coragem”, tremendo, passei e tive a experiência maravilhosa de ser repórter. Então, dois anos depois, quando tudo parecia consolidado, senti essa chama e, para surpresa geral da nação (de novo!), decidi sair da Rádio Universidade. Três anos depois, já graduado, eu trabalhava em uma secretaria municipal aqui de São Luís quando, mais uma vez consciente de onde nasce o sol, eu pedi demissão.
Reconheço meus privilégios de poder pedir demissão sem maiores dores de cabeça, pois, infelizmente, não é algo que a maioria possa fazer. Mesmo assim, foi tenso. Mas vou te dizer: como é bom ter a sensação, mesmo que mínima, de conduzir o próprio barco.
Então, de mergulho em mergulho, cada vez mais consciente do que mora nas profundezas das minhas águas, eu comecei a peitar as pessoas, fazer escuta ativa, buscar argumentos para poder erguer a voz; calar antes de falar, mas sempre pronto ao debate. E um detalhe: olho no olho, cara a cara; ainda com medo, tremendo na base, cheio de cicatrizes, mas decidido a permanecer de pé.
Ali, por volta dos 30 anos, eu cantei finalmente a estrofe magistral de Belchior:
Saia do meu caminho
Eu prefiro andar sozinho
Deixem que eu decida
A minha vida
Claro que as cicatrizes causadas pelo bullying, pela tentativa de afogamento, o abuso sexual, todas continuam em mim e reduzem o efeito dessas doses de coragem. Apesar de ter mudado muito, de ter amadurecido, eu ainda sou aquele menino calado, propenso a baixar a cabeça, cujo olhar sereno tem a melancolia de um oceano em um dia chuvoso. Porém, hoje, onde muitos tendem a enxergar a tristeza da solidão, eu enxergo a possibilidade de novos mergulhos, cada vez mais profundos, cada vez mais libertadores.
Para além da superfície, eu garanto, há muita beleza na escuridão das profundezas de nossas mentes. De fato, quando você desce no próprio abismo e começa a se acostumar, dialogar e abraçar os fantasmas que todos cultivamos, algo se ilumina em meio ao caos e você sorri.
A felicidade, querido Belchior, “é uma arma quente”, sim. Devemos segurá-la com firmeza e ter serenidade para empunhá-la. Não para disparar contra os outros, longe disso, mas para lançar luz sobre nós mesmos.
Salve Belchior!
Salve a coragem de desbravar o próprio oceano!
Salve os marinheiros desbravadores dos oceanos de eternidade!
Música: “Comentário a respeito de John”, Belchior (Belchior / José Luiz Penna)
Álbum: Era uma vez um Homem e seu Tempo, 1979
Saia do meu caminho, eu prefiro andar sozinho
Deixem que eu decida a minha vida
Não preciso que me digam de que lado nasce o Sol
Porque bate lá o meu coração
Sonho e escrevo em letras grandes de novo
Pelos muros do país
Ô, John, o tempo andou mexendo com a gente, sim
Ô, John, eu não esqueço, oh no, oh no!
A felicidade é uma arma quente
John, eu não esqueço, oh no, oh no!
A felicidade é uma arma quente
Quente
Quente
Saia do meu caminho, eu prefiro andar sozinho
Deixem que eu decida a minha vida
Não preciso
Não preciso que me digam de que lado nasce o Sol
Porque bate lá meu coração
Sim, eu sei e você sabe
Bate lá o meu e o teu coração
Sob a luz do teu cigarro na cama
Teu rosto rouge, teu batom me diz
Ô, John, o tempo andou mexendo com a gente, sim
John, eu não esqueço, oh no, oh no!
A felicidade é uma arma quente
John, eu não esqueço, oh no, oh no!
A felicidade é uma arma (quente)
(Quente)
Oh, quente