Sorrisos de incômodo (ou Um sorriso nos lábios, Gonzaguinha)

Uma música “tapa na cara” que retira nossa máscara de “bom mocismo” e coloca o dedo nas feridas sociais abertas há séculos.

Henggo
6 min readOct 11, 2024
Vê-se um homem com nariz de palhaço segurando uma garrafa de cerveja enquanto dança sobre uma corda bamba. No rosto, percebe-se que ele sorri enquanto uma lágrima escorre pela bochecha.
Arquivo pessoal.

SABE QUANDO VOCÊ PENSA: “CARA, QUAIS MÚSICAS TERÍAMOS SE ARTISTA TAL ESTIVESSE VIVO?”. No meu caso, um desses artistas é Gonzaguinha. O lendário Luiz Gonzaga do Nascimento Júnior — filho de outra lenda da música brasileira, o “Rei do Baião” Luiz Gonzaga — e da compositora Odaléia Guedes dos Santos, é um cantor cujos versos me arrepiam desde que eu era muito novo. Na minha opinião fecal, Gonzaguinha é um dos, senão o melhor compositor do que categorizo como “canções político-sociais”: aquelas músicas que traduzem o contexto social e político com maestria e uma peculiar capacidade de causar embaraços.

A música sempre foi uma constante na minha casa. Infelizmente, não temos familiares que tocam algum instrumento musical, porém, pelo menos aqui no meu seio familiar mais próximo, o hábito de escutar música, estar com o rádio ligado o dia todo, sempre foi cultivado. Como nasci em 1988, quando criança, ali na primeira infância, eu tive a oportunidade de crescer rodeado por discos de vinil.

Naquela época, os hoje caríssimos LPs ainda eram a mídia majoritária e começava o processo de transição para os CDs. Nossa, como eram incríveis as capas, a tensão de posicionar a agulha, acompanhar as letras que vinham às vezes no encarte, ver a coleção de vinis crescer… Como já mencionei em textos anteriores, após a parada cardíaca durante a cirurgia de apendicite aos 17 anos, minhas memórias ficaram bem nubladas. Por sorte, no caso desses LPs, talvez por usufruir muito deles, talvez pelo apego a esse ambiente musical, fragmentos dessa época retornaram.

É devido a isso que tenho essa lembrança afetiva tão forte com Gonzaguinha.

Algo que não posso dizer é se “Um Sorriso nos Lábios” foi a primeira música dele que escutei. Impossível averiguar. Mas, certamente, foi uma das primeiras canções que tenho consciência de ter querido escutar sem ser influenciado por alguém. Sei bem o motivo: aqui em casa tinha um LP com apenas duas músicas (chamado mini-LP), sendo que de um lado havia “Um Sorriso nos Lábios” e do outro a icônica “Comportamento Geral”. Acredito que essas duas músicas, com “Lindo Balão Azul” do Guilherme Arantes, foram as que mais escutei nessa época — novamente, uma informação difícil de ser cravada.

Ainda bem que, em certos casos, a força dos sentimentos em relação a algo é um indicativo para nos aproximarmos de alguma certeza.

É óbvio que lá atrás, na infância, eu escutava “Um Sorriso nos Lábios” por motivos bem distantes de alguma consciência social. Quando criança, talvez eu gostasse 1) porque o pessoal aqui de casa gostava muito de Gonzaguinha, principalmente após a morte precoce dele; e 2) devido à semelhança com a voz do supracitado Guilherme Arantes, artista de quem eu gostava (e ainda gosto) muito. Eu só fui ter consciência de que eu escutava um “tapa na cara” muitos anos depois, acredito que ali pelo início do Ensino Médio. Isso graças a uma professora de Literatura que gostava de fazer análises de músicas — algo que também explica de onde vem a inspiração para este projeto #MemóriasMusicais.

Assim, estimulado a fazer uma escuta mais ativa, mais consciente das músicas, “Um Sorriso nos Lábios” (re)aflorou para mim.

O que mais gosto nessa música é a acidez dos seus versos. É uma composição que se apossa dessa noção do brasileiro como um povo feliz, que “sempre dá um jeitinho”; uma falsa qualidade que mascara as desigualdades gritantes que moldam nossa nação. Acima disso, os versos exploram o modo como essa armadura de “povo feliz”, povo “resiliente”, parece conduzir a um “baixar de cabeça”. Tal comodismo, percebo, é algo imposto pelo meio social, pela religião e sua promessa de que “apenas os pobres chegam ao Paraíso”; pela construção colonial que tivemos e permanece enraizada em nós.

“O sangue, o roubo, a morte

um negro em cada jornal

E um sorriso nos lábios

Noventa e cinco sorrisos

Suando na condução

E um sorriso nos lábios.”

Costumo dizer que sou um “cara do rock alternativo/pop rock”. Adoro artistas como Nação Zumbi, Pitty, Aliados, Palavrantiga, The Cranberries, PJ Harvey, Cícero, Molacage, Sixpence None The Richer, Detonautas. Quem gosta desse estilo de música, considerado “mais sereno” pela presença de temas mais “tensos”, sabe que certas canções “dão um gás”, uma “energizada”, munidas por versos que alimentam a raiva, a vontade de mudança, fome de transformação social.

Quando você é adolescente, época em que está moldando seus gostos, consolidando sua índole, a tendência de quem gosta desse estilo musical é que seja pela rebeldia; da transgressão. No meu caso, recordo bem, eu só conseguia enxergar isso no rock e era o típico adolescente chato que rejeita outros estilos musicais. Ainda bem que a escola, os professores e o hábito de leitura impulsionaram uma mudança de mentalidade. Diante desse novo panorama, “Um Sorriso nos Lábios” estapeou e tripudiou das noções tortas que eu trazia da adolescência.

“Um Sorriso nos Lábios” me mostrou que a rebeldia não necessariamente precisa vir acompanhada de rifes agressivos de guitarra. Aparentemente tranquila, essa canção de MPB é um vômito, um jorro de verdades, que encharca nossas hipocrisias sociais.

“Mas sonha que passa

Ou toma cachaça

Aguenta firme, irmão,

Na oração

Deus tudo vê e Deus dará

Ou, então, acha graça

É tão pouca a desgraça

Mas no fim do mês

Lembra de pagar a prestação

Desse sorriso nos lábios”

É óbvio que sorrir é importante; ter uma vibração positiva, para cima, mais otimista sobre a vida nos faz encarar as adversidades de outra forma. Porém, às vezes percebo que nós, coletivamente falando, sorrimos demais, brincamos demais, tendemos muito a “empurrar com a barriga”.

Sim, eu sei que quando falo assim eu me apresento como o típico sujeito que vive reclamando dos excessos de nosso país, como festas e feriados, porém, é algo que vai além disso. Em “Um Sorriso nos Lábios”, Gonzaguinha construiu uma narrativa que, a meu ver, ironiza os defensores dessa “felicidade a qualquer custo”, valendo-se de uma canção tão agradável de se escutar que pode até passar despercebida em uma audição corriqueira. Contudo, mesmo se for dessa forma banal, sua lição é absorvida quase que por osmose porque é uma música que expõe realidades que conhecemos e vivenciamos; é algo perceptível.

Assim, as lições trazidas por ela ficam lá, curtidas em sarcasmo, por trás dos sorrisos, que fomos condicionados a usar para sobreviver em sociedade.

Música: Um Sorriso nos Lábios, Gonzaguinha (Gonzaguinha)

Álbum: EP Um sorriso nos lábios/Comportamento geral (1972)

Vidro moído ou areia

No café da manhã

E um sorriso nos lábios

Ensopadinho de pedra

No almoço e jantar

E um sorriso nos lábios

O sangue, o roubo, a morte

Um negro em cada jornal

E um sorriso nos lábios

Noventa e cinco sorrisos

Suando na condução

E um sorriso nos lábios…

Mas sonha que passa

Ou toma cachaça

Aguenta firme, irmão

Na oração

Deus tudo vê e Deus dará

Ou então acha graça

É tão pouca a desgraça

Mas no fim do mês

Lembra de pagar a prestação

Desse sorriso nos lábios, é

Desse sorriso nos lábios, pois é

Desse sorriso nos lábios…

O jogo, a nêga, a loteca

A fome e o futebol

E um sorriso nos lábios

A taça, a vida, a dureza

Viva a beleza do sol

E um sorriso nos lábios

Os olhos fundos sem sono

Os corpos como lençol

E um sorriso nos lábios

O cerco, a vida, o circo

Silêncio, um medo anormal

E um sorriso nos lábios

Mas sonha que passa

Ou toma cachaça

Aguenta firme, irmão

Na oração

Deus tudo vê e Deus dará

Ou então acha graça

É tão pouca a desgraça

Mas no fim do mês

Lembra de pagar a prestação

Desse sorriso nos lábios, é

Desse sorriso nos lábios, pois é

Desse sorriso nos lábios…

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Written by Henggo

Escritor, Revisor & Ghostwriter. Coleciona trilhas sonoras e nome estranhos de pessoas enquanto espera a chegada dos ETs. Saiba mais em linktr.ee/Henggo

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