“Todas as Cosmicômicas’’, Italo Calvino (#ConsideraçõesLiterárias)

Mesclando ciência e fantasia, Calvino nos oferece uma aula de humanidade, escrita criativa e, acima de tudo, de finitude.

Henggo
10 min readJun 3, 2024
Vê-se um homem andando pelo Cosmo, envolto por Nebulosas e Galáxias que explodem ao redor.
Imagem criada com o Midjourney.

COMECEMOS COM A SEGUINTE FRASE:

[…] pobre delgado universo filho do nada, tudo o que somos e fazemos se parece com você.’’ (p.426)

Imergir nesta antologia cosmicômica foi imergir na vida em sua essência mais pueril. Este foi o meu primeiro contato com Italo Calvino, já dessa forma gigantesca, um mergulho profundo em vários contos só de uma vez. Se foi um bom jeito, não sei dizer. Mas é fato que quando você tem esse impacto logo de cara, ou você ama, ou você odeia. Não há meio termo.

Eu estou fascinado.

Os contos que mais me abraçaram estão marcados com um asterisco. Porém, independente de destaques ou não, mesmo os textos que não me chamaram tanta atenção tocaram nos cantos mais escondidos do pensamento.

Quando você se vê diante do trabalho de um escritor que te convence a permanecer com ele mesmo quando a escrita de alguns contos não te agrada, esse autor deve ser escutado.

Foi o que eu fiz…

Livro 1: As Cosmicômicas

* A DISTÂNCIA DA LUA: Ítalo Calvino tinha muito cuidado na montagem de suas antologias e aqui eu vi isso. Este conto é uma introdução fantástica para o mundo de cosmicômicas. Poético, lúdico, mitológico e também palpável. Humano, acima de tudo. Para alguém que olha muito para o céu, eu fui arrebatado rumo à lua;

AO NASCER DO DIA: e, após a lua, veio o nascer do sol. Os nomes dos personagens (Qfwfq, por exemplo) são geniais, todos formados apenas por consoantes. Percebo que foi uma maneira de evidenciar como a complexidade do universo é tamanha que somos incapazes de compreender até o mero nome de um morador das nebulosas;

UM SINAL DO ESPAÇO: nunca vi tantos sinais diante de mim. Eu li esse texto como uma metáfora sobre a busca por algo, qualquer coisa. Então, quando não o alcançamos, tendemos a apontar erros nos outros, culpar a tudo e a todos, ao invés de parar e refletir sobre a realidade das coisas — e nossa culpa na modelagem dessa realidade;

TUDO NUM PONTO: que forma bonita e curiosa de ver a expansão do universo. Engraçado é que até os seres mais elevados, originários do Cosmo, têm suas intrigas e mesquinharias. Ser vizinho e ter vizinhos é algo complicado, especialmente quando você está condensado em um único ponto e é obrigado a olhar para a cara deles 24 horas por dia. #medo

SEM CORES: remete muito ao Mito da Caverna de Platão. De fato, é uma reinterpretação do mito sobre a criação do mundo e todo o conceito sobre Adão e Eva descobrindo a vida. Poético, melancólico, silencioso, humano;

JOGOS SEM FIM: um jogo cósmico de bocha interestelar. Italo Calvino traz conceitos da Física para transformar uma perseguição em algo para além do épico. Maravilhoso;

E todos os átomos novos que eu tinha escondido, atirei-os ao espaço. (…) Mas não era eu que fazia voar a galáxia, era a galáxia que me fazia voar, agarrado à sua cauda; ou seja, não havia mais alto nem baixo, só o espaço que se dilatava e a galáxia no meio a se dilatar também, e eu seguro ali a fazer caretas na direção de Pfwfp distante já milhares de anos-luz.’’ (p. 80)

*O TIO AQUÁTICO: um preferido para mim, sem dúvida. Aliar as transformações entre as eras geológicas com a atualidade de pessoas que se recusam a aceitar a mudança foi genial. Tio Nba Nga é aquele tipo de parente que todos nós temos, recusando-se a mudar, propenso a grosserias quando alguém tenta trazê-lo à razão — e capaz de convencer as pessoas com fake news elaboradas, se é que você me entende… Genial, genial texto!;

APOSTAMOS QUANTO: não gostei. Entendo a questão de mergulhar nas métricas do universo e no fato do tempo ser uma convenção humana, inexistente no Cosmo. Porém, na minha opinião fecal, achei o conto confuso mesmo dentro da complexidade que o livro já traz…;

*OS DINOSSAUROS: uau! Terminei boquiaberto com este. Que jeito incrível de abordar a questão da imigração, a perda das raízes, o medo de ser descoberto, a melancolia agridoce de se descobrir integrante de um novo povo e saber que isso significa o fim de quem se é. Aqui, temos um conto sobre a nossa incapacidade de entender as peculiaridades do outro como fundamentais para a construção de nossa cultura, para a diversificação de nossas possibilidades, e impomos uma espécie de “nivelamento sociocultural’’ que destrói nossa essência;

Percorri vale e planície. Cheguei a uma estação, tomei o trem, perdi-me na multidão.’’ (p. 131)

A FORMA DO ESPAÇO: o fato de que duas linhas paralelas tendem a se encontrar em algum ponto no infinito rege este ensaio/conto sobre a busca pelo objeto de desejo — e o modo como o ciúme rege muitas de nossas confabulações sobre esse tema. Texto intrigante, complexo, inebriante;

*OS ANOS-LUZ: trazendo para a atualidade, nestes tempos de redes sociais em que nos importamos tanto com o que alguém distante tem a dizer sobre nós, este conto é, na minha opinião fecal, genial. E olhando por um viés mais voltado para a mística religiosa, o texto mergulha também na visão desse Deus onipresente que nos vê 24h por dia e julga cada passo que damos. Lembrei muito da música Watch Me da cantora ANOHNI. E é massa pensar que, se de fato Deus vê cada coisa que fazemos, inclusive as mais porcas e indecentes, ele está pouco se fodendo para nós, divertindo-se ao instigar nossa imaginação com cartazes onde se lê “EU VEJO VOCÊS, IDIOTAS!’’;

[…] Uma noite, como de costume, eu observava o céu com meu telescópio. Notei que de uma galáxia a cem milhões de anos-luz de distância destacava-se um cartaz. Nele estava escrito: EU TE VI. […]’’ (p. 146)

A ESPIRAL: grande e belíssimo encerramento dessa primeira parte. O personagem Qfwfq, testemunha ocular da vida desde seu princípio, para mim é o que hoje os cientistas tanto buscam: a chamada “Partícula de Deus’’. Acompanhar as deduções, provocações e ilusões desse ser diante das transformações do mundo é um desafio de leitura, mas também um presente para a alma.

Livro 2: T=0

A LUA MOLE: e mais uma vez começamos com a lua e suas particularidades. Como não ficar encantado, intrigado e ao mesmo tempo confuso com essa nova maneira de ver a formação do nosso satélite natural?;

A ORIGEM DAS AVES: confesso que desisti deste. É legal essa imersão no surgimento das aves, fazendo uma brincadeira com os primeiros híbridos entre répteis e aves, porém, não me prendeu;

OS CRISTAIS: a imutabilidade dos cristais em contraste com nossa pequenez. Interessante essa defesa de como tudo, da areia à música, quando paramos para pensar, é formado por pequenos cristais (que entendi também como uma analogia com os átomos). Instigante e curioso;

*O SANGUE, O MAR: bonito pensar que nada mais somos (dentro) do que uma continuidade do oceano (fora) que ainda reside em nós, fluindo pelo nosso corpo, correndo por nossas veias. Talvez daí venha nosso fascínio e terror pelo oceano. E se pensar que esse fora pode simplesmente transbordar e destruir o que carregamos dentro, é como se esses dois fluxos liquefeitos, obrigatoriamente separados, a todo momento estivessem famintos e desesperados por voltarem a se unir em um mesmo ser;

[…] O mar, no qual outrora os seres vivos estavam submersos, está agora encerrado em seus corpos.’’ (p. 218)

*PRISCILLA: “[…] um instante fundamental de continuidade’’. Creio que essa frase define este conto. É a filigrana de vida que despende de nós a cada gozo. Aqui, amor e sexo pela visão cósmica ganham nuances filosóficas, sim, mas creio que esse adjetivo não abarca a profundidade que senti ao ler. Usar os conceitos de mitose, meiose e morte para explicar um relacionamento entre Priscilla e Qfwfq foi complexo, lindo, poético, estranho, chamativo, instigante — e não é tudo que o sexo é, afinal? A questão de como, por causa de nossa constante morte e nascimento de células, nós precisamos reconquistar alguém e suas células várias vezes ao dia, foi algo que fez minha cabeça explodir. Somos vários ao longo do dia, centenas ao longo de uma semana, bilhões de eus dentro de uma mesma vida. E pensar na complexidade que é encontrar outro oceano de células que se abre nessa fusão é o pensamento que, sem dúvida, me faz pensar muito, muito, muito além de qualquer obviedade romântica já dita pelos poetas;

T=0: creio que eu nunca tinha visto a definição tão assertiva da expressão “um segundo que dura uma eternidade’’. O homem, a flecha e o leão servem como pano de fundo para personificar as várias possibilidades que acontecem a todo momento em nossas vidas. Assim como no conto “Priscilla’’, mais uma vez temos aqui esse instante fundamental de continuidade, onde tomamos decisões mil e vivenciamos milhões de possibilidades em milésimos de segundos na equação de um grande “e se?’’. Pois bem: e se?;

A PERSEGUIÇÃO: assim como o anterior, mais uma vez imergimos nessa esteira de possibilidades que corre diante de nossos olhos. Particularmente, confesso, não me apeteceu muito;

*O MOTORISTA NOTURNO: ainda na mesma vibe dos filigranas de tempo que se moldam em eternidades devaneantes, este aqui se enriquece ao mergulhar na mente de um amante que ama demais. Mais uma vez, o velho conceito do “e se’’ ataca. E as conjecturas que ele provocam dizem muito sobre o mundo caótico em que vivemos hoje em dia;

O CONDE DE MONTECRISTO: uma imersão baseada no romance de Alexandre Dumas que nos leva por aspectos mais filosóficos sobre a vida e a metáfora da existência. Não gostei muito, confesso. É interessante como exercício de escrita criativa, mas, particularmente, não consegui ver para além disso.

Livro 3: Outras histórias cosmicômicas

*A LUA COMO UM FUNGO: Qfwfq está de volta!!! Massa a junção cósmica com a ascensão da lua e, surpreendente, com aspectos da pirataria clássica. Um conto de fato lúdico;

Sei que devo à Lua tudo o que tenho na Terra, àquilo que não está aqui o que está aqui.’’ (p. 340)

AS FILHAS DA LUA: a deterioração da lua mesclada ao encantamento diante do fantástico. Calvino mostra como consegue fazer esses textos complexos, quase um devaneio cósmico, mas que também são fundamentados na realidade palpável;

*OS METEORITOS: metáfora sobre a vida em casal, no modo como a junção de poeiras (aqui entendidas como brigas, rotinas, sonhos, tudo) contribui para a construção e também para a destruição de uma relação. O mais incrível é pensar que o autor usa da teoria científica sobre a formação do nosso planeta para traçar esses pensamentos. Maravilhoso;

*O CÉU DE PEDRA: creio que ao longo da vida, muitos de nós já se depararam com teorias da conspiração sobre a tal Terra Oca. À princípio, parece o mesmo contexto, porém, Calvino, um defensor da ciência, não faria algo assim. O que vi aqui foi um conto intrigante, pujante, significativo, sobre uma origem de vida “de dentro para fora’’, como diz Qfwfq. O modo como o autor usa de conhecimento científico para fortalecer e justificar essa ideia, sem deturpar a verdade, é algo que me deixou sem fôlego. O Céu de Pedra me fez pensar, e pensar, e pensar… Mergulhei em cada camada;

Querem ser chamados terrestres, sabe-se lá com que direito, já que o verdadeiro nome de vocês seria extraterrestres, gente que está fora […]’’ (p. 370)

*ENQUANTO O SOL DURAR: assim como o anterior, aqui Calvino se apodera da ciência e tece uma trama familiar fundamentada na briga dos avós de Qfwfq ao buscarem por uma nova estrela onde morar. É a humanização do Cosmo ou a cosmificação do Humano. Sorri;

TEMPESTADE SOLAR: uma brincadeirinha com a certeza do fim de tudo o que existe, inclusive o Sol. Uma ode à finitude;

[…] O que chamamos de Sol nada mais é do que uma contínua explosão de gás, um estouro que dura há cinco bilhões de anos e não para de jogar coisas, é um tufão de fogo sem forma nem lei, uma ameaça, uma opressão perpétua, imprevisível.’’ (p. 388)

*AS CONCHAS E O TEMPO: uma frase que traduz esta cosmicômica: “A partir das nossas espirais ininterruptas, vocês reuniram uma espiral contínua que chamam história.’’ (p. 495) Genial. O tempo traduzido em concha, o fluir da vida na espiral da secretação calcária, a estratificação de restos de vivências moldadas na pequenez de um ser. Maravilhoso e tocante;

*A MEMÓRIA DO MUNDO: uau, uau, uau! Mais um só por garantia: UAU! Uma confissão, um desabafo, um relato profundo que termina de forma trágica e surpreendente. O fim em si mesmo e a celebração de todos os fins. Calvino é incrível! É o mínimo a ser dito nestes rumos finais da antologia.

Livro 4: Cosmicômicas novas

*O NADA E O POUCO: lembrei do clássico O Universo numa Casca de Noz do Stephen Hawking. A citação do início desta resenha é retirada deste conto. Somos nada. Podemos fazer tudo, soberbos, altivos, famintos por grandes coisas. Não somos nada. Ponto final. E, vou te dizer, saber disso torna o viver uma experiência muito mais simples e prazerosa;

A IMPLOSÃO: entropia. Interessante como a organização das cosmicômicas levou em consideração um percurso de nascimento da vida e do lúdico com A Distância da Lua e nos trouxe até este conto. Não que seja um fim, mas um tom de conclusão; um respiro após tantas horas de pensamentos e de considerações. Bonito conto.

Livro 5: Uma cosmicômica transformada

A OUTRA EURÍDICE: e aqui, na cosmicômica derradeira, temos um retorno a Morfeu e Eurídice, sendo esta uma verdadeira terrestre, de dentro, moradora das camadas do planeta Terra. É uma admissão de que nós, extraterrestres, ganhamos com nosso céu azulado, fluído, maleável, porém, ficamos tão soberbos que nos tornamos incapazes de escutar a música de Eurídice (a Natureza) e agora morremos no desespero de encontrar vida onde nós impomos morte. É um final arrebatador para estes contos.

Devo dizer que, pelo menos para mim, não foram textos tão fáceis. Veja: eles não são rebuscados, pelo contrário. A linguagem é muito acessível. A questão é que eles são complexos pela temática, por não estarmos acostumados a pensar para além do óbvio, por agregarem muitos princípios científicos de Física, Química, Biologia e Matemática. Porém, mesmo assim, foram textos que me trouxeram conhecimento, instigaram minha vontade de saber mais, injetaram em mim o fortalecimento por um olhar mais simples diante de nossa finitude e irrelevância perante o Universo.

Não tenha medo: todos nós, famosos ou não, relevantes ou não, seremos esquecidos. Este livro é uma lembrança disso.

Viva Italo Calvino!

Viva a ciência!

Viva a certeza da insignificância que nos liberta!

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Written by Henggo

Escritor, Revisor & Ghostwriter. Coleciona trilhas sonoras e nome estranhos de pessoas enquanto espera a chegada dos ETs. Saiba mais em linktr.ee/Henggo

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